A COISA



 
        Tento me lembrar de alguma coisa que existiu e da qual só me lembro que existiu, porque essa coisa não se faz visível em qualquer lugar da memória nem do mundo, lugar de onde eu pudesse enquadrá-la com a objetiva da minha câmera, câmera aliás com as lentes embaçadas, fato que, por princípio, torna tudo desfocado.
        Talvez o problema esteja, então, na câmera, não nessa coisa que existiu e da qual não consigo me lembrar, nem enfocar. Talvez a coisa até esteja aqui, bem diante dos olhos, irreconhecível como a carta roubada do conto de Poe, irreconhecível pelo embaçamento das lentes da câmera.
        Além disso este lugar está muito mal iluminado, com quase todas as lâmpadas queimadas - por este detalhe, caro leitor, podeis deduzir que é noite, ou dia muito escuro em razão de alguma tempestade ou... A única claridade vem de pequenina fresta na janela, localizada numa das extremidades desta sala que, convenhamos, parece-me demasiado grande para ter apenas uma janela tão minúscula que  não me permite distinguir por  sua fresta se a claridade lá fora é de dia tempestuoso ou de noite não absolutamente escura.
        É possível que não sejam as lentes embaçadas da câmera o impedimento real para a visão da coisa que existe e da qual não consigo me lembrar, por mais que o tente. O verdadeiro empecilho deve ser a parca iluminação de dentro.
        Também, se eu fosse uma aranha ou outro inseto qualquer para poder percorrer toda esta sala, à procura da coisa que com certeza existe e da qual não consigo me lembrar de jeito nenhum, conseguisse achá-la, a coisa, porque a sala, imensa, está completamente entulhada de objetos, uns por cima dos outros, uns por trás dos outros, por baixo, pelos lados, mal deixando espaço para meu próprio corpo que, quase reduzido à completa imobilidade, encontra-se na extremidade oposta da minúscula janela e exatamente em frente à única porta, fechada, ao alcance da minha mão esquerda.
        A probabilidade mais plausível é a de que a coisa esquecida na minha memória esteja dentro de algum dos incontáveis objetos que entulham esta sala. Outra dificuldade se acrescenta à procura empreendida: a incrível quantidade de poeira que envolve todos os objetos, transformando tudo em intensa névoa. Como encontrar dentro, ou acima, ou embaixo, ou atrás de, ou na frente de, a coisa de cuja existência tenho a mais absoluta certeza e da qual cada vez me lembro menos? Como encontrá-la nesta névoa de poeira, névoa onde a minha mão direita acaba de se perder?
        Uma mosca pousou-me na ponta do nariz e vai ficar aí, enquanto durar a vida dela e a minha porque, na tentativa de abrir a porta em frente com a única mão disponível,  esquerda, esta derradeira emperrou e ficou presa na tal porta, com muito esforço aberta alguns poucos centímetros. Através da brecha vejo sombras de corredor que vai dar, talvez, em alguma cozinha ou quarto de hóspedes, ou banheiro, ou sala de estar... Percebo que a minha derradeira mão começa a enferrujar.
        A mosca na ponta do meu nariz parece também entorpecida pela poeira e pelo excesso de objetos da sala. Pobrezinha! Ela pousou aqui por mero acaso, não creio em qualquer intencionalidade de sua parte. Não me parece que esta companheira esteja à procura de qualquer coisa que talvez tenha existido e da qual nunca tenha conseguido  nem  jamais venha a se lembrar.