Para ler
Naquela manhã, como em todas as anteriores, sobre minha mesa na editora havia uma pilha de originais a serem avaliados. Geralmente, um trabalho de execução rápida. Só pela leitura do primeiro parágrafo, às vezes até mesmo da primeira linha (em caso de erros gritantes de português), era possível saber se valeria a pena prosseguir na leitura ou se o melhor seria passar para o próximo da pilha. E, claro, sempre havia os que desconheciam totalmente a nossa linha editorial e imaginavam que publicaríamos qualquer coisa - compêndios e livros de autoajuda, por exemplo. Pois o primeiro original que peguei, tinha por título "O Poder da Leitura". Seria de autoajuda? Abri a página inicial, e o primeiro parágrafo começava assim:
"E se o ato de ler uma obra de ficção fosse mais do que uma experiência sensível e estética, mas representasse a criação de uma realidade que coexiste com a nossa num outro plano de existência?"
- Ideia interessante, mas de verificação impossível - pensei. - Talvez, dentro da teoria dos muitos mundos...
"E se o ato de ler fosse uma experiência interativa, que pautasse a nossa própria realidade à medida em que seguíssemos a narrativa, conjurando todo um novo universo para dentro do nosso, pela simples leitura das palavras?"
- Seria como formular um encantamento - pensei.
E no próximo parágrafo:
"Tal é o poder da leitura que, neste exato instante, você leitor, torna-se parte da realidade que eu, o narrador criei. A sua existência passa a ser definida em antes e depois de ler estas palavras. Você não é mais senhor do seu destino..."
Era o suficiente. Joguei o original dentro do cesto de lixo.
Neste exato momento, ouvi baterem na porta do escritório.
- Está aberta! - Exclamei.
A porta se abriu e vi um desconhecido de pé no umbral da porta, trajando um terno alinhado, cor de grafite.
- Quem é você? - Indaguei.
- Sou o novo dono da editora - respondeu secamente o estranho. E, apontando para a minha lixeira:
- A propósito, pegue esse original que jogou no lixo. Vamos publicá-lo.
[12-01-2017]