O vira lata - DTRL 31

O vira lata

Josué, ou o cachorro louco, como costumava ser chamado no meio policial, era um criminoso da pior índole, daquele que até mesmo o mais valente dos homens, ou o mais treinado policial, tinha medo.

Assassino, vil, sádico, latrocida, torturador, estuprador. Eram adjetivos de sua extensa ficha criminal. Seu ódio pelas pessoas, superava-se apenas pelo ódio que sentia dos animais. Cães e gatos sofriam o diabo nas mãos do terrível sujeito.

Diziam que ainda jovem, tinha como brincadeira predileta, atear fogo em cães vivos e afogar gatos em um córrego perto de sua casa. Na escola, o diretor recomendou inúmeras vezes a sua mãe, que o levasse aos médicos, porém a pobre matriarca não conseguiu, e não se sabe, se por desgosto ou tristeza, certo dia, seu coração desistiu de bater. O diretor da escola, como se nunca tivesse existido, desapareceu da face da Terra, mas a verdade, é mais mórbida. Josué, havia conhecido ali, um insólito prazer. O prazer de matar.

Friamente esperou o diretor no estacionamento, que ficava nos fundos do colégio, muito mal iluminado por sinal, e em um ato covarde, o golpeou com uma barra de aço na nuca. Por azar do coitado, a pancada não foi suficiente para mata-lo. Então, Josué resolveu leva-lo em aterro próximo ao barraco aonde morava e torturou o homem até a morte, enterrando-o em uma vala.

Junto da necessidade de sobrevivência, ou da vontade macabra, Josué construiu um caminho de sangue. Em cada assalto, uma vítima. Em cada sequestro, uma violação, um espancamento, uma morte. As pobres almas que cruzavam com a sua fúria encontravam um trágico fim, quando muito, eram ocultas em alguma mata ou cova rasa em algum lugar desabitado.

O estranho sumiço ou fim do Cachorro Louco, deu se em condições, no mínimo estranhas. Josué havia roubado um banco junto com o seu parceiro, vulgo Marreta, e seguia em alta velocidade para os confins da cidade.

Subitamente, em um cruzamento, um cachorro surgiu há uns 150 metros do veículo em fuga. Distancia essa, mais que suficiente para um desvio seguro do bichano. E isso foi o que o parceiro Marreta, pensou que Josué Iria fazer. Marreta mal teve tempo de cobrir o rosto, quando em um ato cruel, Cachorro Louco abriu a porta do carro, acertando o pobre cão de maneira fatal. O bicho apenas grunhiu de dor e rolou, desaparecendo aos olhos do Marreta, pelo espelho retrovisor.

- Porra Josué! - Precisava matar o bichinho. - Marreta disse, em um tom apreensivo.

- Tô nem aí, cara. Detesto essas pragas. - Cachorro louco respondeu gargalhando.

Algo na risada de Josué, fez as pernas de Marreta adormecerem e seu sangue gelar. Sua testa colecionava gotas de suor e sua mão, uma tremedeira incontrolável. De tanto tremer, a atenção de Josué foi despertada.

- Está tudo bem, meu comparsa? - Josué disse, quase que de forma sarcástica.

- Só quero acabar logo com isso, cara. Pegar a minha grana e sumir para sempre. - Marreta respondeu, com um sorriso forçado.

- Bom, temos um problema aí. - Josué retrucou, seguido do som do cão do revolver.

Os olhos de Marreta escancararam-se.

- Você não tem corag...

Três disparos seguidos colocaram fim a vida de crimes de Marreta, deixando o carro com cheiro de sangue e pólvora e pedaços de massa encefálica e cacos de caixa craniana. Enquanto abria a porta para jogar o cadáver do Marreta na rua, a figura de um cão no sentido oposto da via, o fez perder a atenção à direção.

- Praga, parece aquele vira lata que eu atropelei, mas a carcaça dele, ficou uns 20km para trás. Não, não é possível. - Cachorro louco, pensa.

Em uma olhadela pelo retrovisor, ele pode avistar novamente o animal. Só que dessa vez, sua aparência era tenebrosa. Seu corpo estava em decomposição, no lugar dos olhos, apenas a cavidade vazia, sua barriga tinha alguns órgãos putrefatos amostra. A cena surreal fez com que Josué perdesse o controle da direção mais uma vez, fazendo-o bater violentamente contra um poste. Antes de perder a consciência, ele pode ver uma vez mais, aquele cadáver de cão, abanando o rabo.

- Mas, que diabos! - Josué pragueja levando a mão na testa. A dor da pancada contra o volante, lateja em sua cabeça.

- Preciso sair daqui antes que os canas apareçam. - E sai cambaleando do carro, não antes de pegar o malote de dinheiro, no banco de trás.

Talvez tenha sido o acidente, ou a visão da criatura no meio fio, o fato é que Josué não fazia ideia de onde estava. Por ter ficado desacordado, a falta de noção de quanto tempo ficou apagado, lhe causou estranheza, pois a noite já despontava em um céu acinzentado e ameaçador. Não havia casas, prédios ou ao menos, vestígios de viva alma. Exceto, por um letreiro ao longe, que piscava freneticamente tons avermelhado e púrpura.

Aproximando-se, Cachorro Louco, percebeu que se tratava de um bar, e mesmo desconfiado de dar de cara com um bar no meio do nada, resolveu adentrar o lugar.

A escuridão e o cheiro de mofo, reinava na pocilga. Apenas uma fraca luz, bruxuleava do lugar que o balcão ficava. E para lá, Josué se dirigiu.

- Me vê uma pinga aí. - Ele disse para a silhueta de trás do balcão.

- Bem na hora, meu querido Josué. - O homem respondeu, calmamente enquanto lavava um copo.

- Como sabe o meu nome, filho da puta? Aposto que o Marreta tem a ver com isso! - Josué brandiu, sacando o seu revolver.

- Restam apenas três balas em seu revolver, não? Sinto em dizer que em nada vai adiantar. - O homem responde, sem se importar.

Blam! Blam! Blam!

Três disparos, há um metro de distância, em cheio no peito do homem, varando suas costas, atingindo a parede, quebrando garrafas e copos.

O homem ri e dá de ombros.

- Não te falei. - Ele continua. Dessa vez revelando a sua face.

Quando o Cachorro louco encara o rosto do até então desconhecido sujeito, o verdadeiro e visceral horror se instaura em seu corpo. Aquela face esquelética, com olhos vermelhos, vai muito além do que Josué já viu e até mesmo acredita. É certo que ele já viu muita coisa em sua vida, e fez ainda mais, além do que, é intimamente acostumado a ter como companhia a morte e a desgraça. Mas nada se compara com a visão aterradora daquela caveira com olhos infernais. Não para Josué. Em vão, ele ainda pressionou o gatilho do revolver mais algumas vezes, produzindo um som esganiçado e arrancando gargalhadas de escarnio da figura esquelética.

- Viu como não faz diferença? Sente-se e aproveite a bebida. É por conta da casa. - A criatura descarnada disse, servindo uma bebida de tom esverdeado para Josué.

As mãos de Josué começaram a tremer, a sensação de falta de controle dominou o seu corpo, quase que o obrigando a levar o copo até a boca.

Sua força de vontade não foi o suficiente, e como se fosse controlado por forças invisíveis, ele sorveu todo o liquido.

A fraca luz próxima ao esqueleto diabólico, começou a girar. De fato, todo o lugar começou a rodopiar ante os olhos de Josué, sua garganta secou e sua cabeça martelava em um ritmo lancinante. Josué ainda tentou sair daquele lugar macabro, mas algo de errado aconteceu com suas pernas, quase como se ele tivesse desaprendido a andar. Em menos de três passadas cambaleantes, ele tomba pesadamente no chão. Antes de perder a consciência, Josué pode ver o cadavérico homem se aproximando, rindo de forma descontrolada. O Cachorro louco, com o restante de suas forças, ainda tentou agarrar o monstro, entretanto, suas mãos também estavam incontroláveis, seu terror e medo era tão grande, que pensou por um instante ter visto, uma pata no lugar de seus braços. Completamente exausto, com o seu fim iminente, restou apenas balbuciar:

- Fiiilhooo daaaaa.... Woooolff.

Josué acordou em meio a um amontoado de lixo, em lugar imundo, úmido, com baratas saindo dos buracos das tampas do bueiro, juntamente com um vapor ainda mais malcheiroso que o lugar em si. Ele tentou levantar-se, porem algo em suas costas não permitiam, restando apenas, caminhar sobre seus quatro membros.

Enquanto saia daquele lugar asqueroso, uma movimentação a frente, na rua, chamou a sua atenção.

- Posso até ser preso, mas pelo menos sairei desse pesadelo. - Josué pensou enquanto ia em direção à rua.

Não muito longe, ele avistou um carro, estranhamente familiar. Depois da experiência surreal que ele vivenciou, ver algo comum, ainda mais, conhecido, lhe causou alegria. Entretanto, o motorista pareceu não vê-lo ali em meio ao asfalto, muito pelo contrário, o carro acelerou mais. Com muito esforço, Josué pode se desvencilhar do veículo, não antes da porta do motorista, o acertar em cheio. Antes da vida deixar o seu corpo, ele pode ver bem o motorista que jogou o carro em sua direção.

Ele viu a si mesmo.

Temas: Fantasmas / Assombrações.