PERCEPÇÃO
 
 
            Às vezes gosto de ficar imaginando até onde minhas escolhas do passado, se feitas cautelosamente, poderiam alterar aquilo que chamo de presente. Talvez isso contribuísse para que eu não vivesse tão recluso ou mesmo desfizesse os erros que cometi. Lá fora me chamam de assassino. Na verdade, não conseguem entender. Eu os libertei para imortalidade, arrancando da prisão em que viviam, colocando no mais alto patamar da existência, um novo mundo, uma nova realidade.
           
 
PRIMEIRA PARTE: Sei Exatamente o que Está Pensando
 
            O Edifício Olimpo era uma raridade do século XXI, um dos únicos habitáveis na superfície de nosso imenso e degradado planeta Terra. Eu insistia em morar no apartamento que possuía nele. Não por dificuldades financeiras (o dinheiro não é mais tão importante há um bom tempo), mas pelo meu estranho gosto por memórias da superfície.
 
            Diversas eram as tardes em que tomava uma bebida enquanto mirava a janela da varanda. O mundo lá fora não possuía as mesmas cores que meus antepassados costumavam ver e registrar. Hoje em dia o vermelho dominava a imensidão dos céus e uma poeira asfixiante dançava pelas ruas desertas. Ao contrário da catastrófica sensação que a superfície passava, o subsolo era um lugar convidativo para os cidadãos que ainda possuíam o ânimo de existir. Não havia razão para sofrer no mundo. O trabalho e a dor não existiam mais. As máquinas podiam prover qualquer coisa que desejasse, elas trabalhavam noite e dia, cumprindo os afazeres que uma vez eram desperdiçados pelas mãos dos seres humanos. Dessa forma, restava ao cidadão o ato de criar e pensar, exercendo seu papel de modo mais profundo, alcançando uma humanidade nunca antes vista.
 
            A campainha tocou, tirando meu momento de reflexão. Deviam ser os convidados. Abri a porta e os dois homens me cumprimentaram com um aceno rápido. Poderia chamá-los de amigos de longa data. Efraim era um jovem de aparência atlética, loiro e de olhos azuis, considerado muito astuto e um físico teórico respeitável. Podo, por outro lado, possuía uma aparência pálida e doentia por culpa do uso excessivo de drogas experimentais, era baixo e extremamente magro, um especialista em arte e um pintor primoroso. Deixei-os entrar e olhei o corredor a procura do terceiro convidado, mas deparei-me apenas com as lâmpadas fluorescentes que iluminavam o caminho até o elevador.
           
“Muito bem, senhores, sintam-se à vontade. Acho que faremos nossa reunião em minha biblioteca, acomodem-se e eu buscarei alguma bebida.”
           
“Qualquer coisa com álcool seria aceitável”, comentou Podo.
           
“Pensei que Gardel já estaria por aqui.”
           
“Tenho certeza que chegara em breve, Efraim.”
           
Retornei a biblioteca com as bebidas. Efraim aguardava sentado em uma das poltronas com os olhos semicerrados enquanto Podo avaliava minha coleção.
           
“Andam contando histórias sobre você no subsolo, Hugo. Histórias sobre o contador de histórias, não é interessante?”
           
“Desse modo parece ser, Efraim, mas deve saber que já não conto nada há tempo.”
           
Ele deu os ombros para mim, como se minha afirmação não tivesse valor. Continuei:
           
“Se julga o pensamento dos outros sobre mim mais digno do que o meu, diga-me: o que andam falando?”.
           
“Ora, Hugo, você nunca se destacou pela retórica. Os cidadãos falam lá embaixo, mas creio que seus ouvidos vão além. Sua reclusão na superfície indica uma possível falta de ânimo.”
           
O ânimo. Aquela vontade de viver e ter realizações. Em minha concepção aquilo significava uma pura negação. “Se o que dizem é verdade, então por que não estou morto? Se não tenho mais ânimo, poderia ter me jogado pela varanda ou buscado a morte com a ajuda de uma máquina… Há muitos meios possíveis.”
           
“Você tem razão. Nesse mundo não há motivos para viver em amargura.”
           
Efraim ergueu as sobrancelhas, tomou um gole da bebida e prosseguiu:
           
“Meu avô, pai de meu pai, contava a história de um vídeo gravado por um ancestral nosso, há muito tempo morto. Nesse vídeo, nosso tataravô falava do medo que havia em sua era. Uma grande parte do mundo estava sem ânimo, se arrastando pela vida sem contribuir em nada para existência da humanidade. E sabe de uma coisa? Mesmo os mais inúteis e vagabundos temiam a próxima revolução.”
           
“É mesmo? E qual seria a próxima revolução do mundo de seu tataravô?”
           
“A revolução das máquinas.” Respondeu Podo que, embora continuasse a analisar a quinta fileira de livros, analisando um Lewis Carrol, ainda prestava atenção em nossa conversa.
           
“Isso mesmo, Podo. Eles temiam que as máquinas tomassem conta de tudo e que os seres humanos fossem extintos por sua própria criação.”
           
“Isso é besteira.” Rebati.
           
“Acredite, isso está bem documentado. Porém, o ponto em que gostaria de chegar era a posição de meu ancestral sobre o evento.”
           
“E qual era, Efraim?”
           
“Ele acreditava que mesmo que as máquinas dominassem os humanos, ainda assim precisariam de um bom ser humano para passar um pano nelas.”
           
Podo desatou a rir. Efraim nem piscou, apenas manteve aquela expressão intrigante de costume, pousou uma mão abaixo do queixo e completou:
           
“Assim como meu tataravô, prefiro vislumbrar o mundo por perspectivas diferentes do comum.” As suspeitas de Efraim pareciam recair de modo insistente sobre a quebra da ordem do mundo contemporâneo. “Teu convite me intrigou, Hugo. Como você disse, não está morto. Isso é um fato inegável. Porém, do mesmo modo, não vejo nenhuma máquina aqui dentro, nenhuma câmera ou computador. Essas máquinas existem por uma razão, Hugo, estão aqui para que não precisemos nos preocupar ou gastar energias em objetivos inúteis e repetitivos.”
           
“Sei exatamente o que está pensando, Efraim, mas tenho certeza de que nossas discussões tomarão outro caminho.”
           
Antes que alguém pudesse revidar, a campainha tocou e me senti aliviado por ter a presença de Gardel naquela noite.
           
Abri a porta, surpreendendo-me com tamanha beleza. Gardel possuía uma pele completamente escura, como se toda a luz que a tocasse não tivesse vontade de abandoná-la. Seus cabelos crespos subiam em graciosos arcos e seus pequenos cachos serpenteavam com exuberância pelos ombros nus da mulher. Seus olhos verdes miraram os meus com a voracidade de antigos amantes. Sorriu, passando por mim como um anjo.
 
 
SEGUNDA PARTE: Mentes Dissociadas
 
           Assim que acabei de expor meu objetivo experimental, tomei cuidado para guardar a reação de cada um deles. Efraim era meu contraponto, o cético e descrente. Seus olhos eram o espelho da negação e sua risada uma provocação à altura. Podo, meu estranho amigo, não olhava diretamente para mim, ao invés disso, prestava atenção em algo acima de meu ombro. Era seu jeito de demonstrar curiosidade. Ele havia gostado da ideia, como qualquer artista gostaria. Enquanto isso, Gardel, minha musa inspiradora, trazia a neutralidade em sua face. Foi ela quem trouxe a questão:
           
“Eu diria que sua proposta traz uma improbabilidade de ser real. Como você conseguiria alcançar a telepatia?”
           
“Isso só pode ser brincadeira!”, exclamou Efraim: “Ele está dizendo que pretende ler mentes! Isso não faz nenhum sentido!”.
           
Antes que pudesse intervir, Podo trouxe o argumento que meu amigo físico não conseguiu entender.
           
“Efraim, creio que a proposta de Hugo se baseie no entendimento do outro como uma forma de percepção de si mesmo e da humanidade.”
           
“Acho que Podo apresentou o problema de maneira mais clara que eu. Não convidei vocês aqui para apresentar uma ideia utópica sobre um assunto sobrenatural. Estamos aqui para trazer à tona uma realidade até então ignorada. Este será o próximo passo, a nova revolução da humanidade: a compreensão completa sobre o que é existir.”
           
Às vezes meus discursos tornavam-se maiores do que eu gostaria. Os três olhavam-me com uma dose proporcional de espanto:
           
“Acho melhor levá-los ao laboratório e responder a questão sobre como procederei. Gardel, trouxe os materiais que solicitei?”
           
Ela deu uma leve batida sobre a maleta ao lado da poltrona.
           
Em geral, o apartamento lembrava um museu: móveis, estantes, vidrarias e nada de computadores ou máquinas. Havia apenas o básico e essencial para se viver. Por outro lado, existia um mundo a parte dentro do laboratório. Um conjunto de supercomputadores quânticos preenchiam as paredes. Gráficos e imagens de ressonância magnética iluminavam as telas, exibindo os experimentos que havia realizado em solidão. No centro da sala, duas macas metálicas estavam dispostas lado a lado, misteriosas e amedrontadoras.
           
“Vocês devem estar familiarizados com o conceito de inconsciente coletivo…”.
           
“Carl Jung, correto?”, indagou Gardel.
           
Meneei a cabeça em concordância.
           
“De fato, nunca conseguiria ler a mente de alguém sem a sincronicidade. Descobri que preciso traduzir os símbolos antes de poder usá-los.”
           
Efraim continuava no ciclo de negação, verificando meus dados nos computadores.
           
“Tentei alcançar esse mundo inconsciente através da minha própria mente. Porém, após muito esforço, tomei conta de que embora eu consiga abrir a porta para esse lugar, também sou o responsável por segurá-la e mantê-la integra. Não há como acessar o inconsciente coletivo por si, esse exercício necessita do outro.”
           
“Dentro da mente do outro você não precisa segurar a porta…”, Podo completou a analogia.
           
Nesse momento percebi que Efraim não negava por descrença, mas por medo. Senti isso quando ele mirou as macas com seus olhos arregalados. Ele ainda possuía receio sobre minhas ações.
           
O silêncio foi quebrado pela doce voz de Gardel, que colocou a maleta sobre a mesa, abrindo-a:
           
“Agora entendo porque pediu por isso”, de dentro da maleta tirou um frasco de vidro contendo uma solução translúcida e uma seringa: “Você precisa da ajuda de Morfeu”.
           
“Do que ela está falando?”, perguntou Efraim.
           
“Os sonhos são o segredo do meu experimento, caro Efraim. Eles são a porta de entrada, o meio pelo qual qualquer mente organiza os sistemas complexos de seus pensamentos. Através dos sonhos, posso atravessar a porta e para isso preciso de um voluntário.”
           
Antes que respondesse ao chamado, já sabia o resultado: precisava de Efraim como o cético e, mesmo medroso, seria minha testemunha de oposição; Gardel era a única de nós com treinamento médico capaz de resolver os eventuais problemas médicos; restava meu estranho e curioso amigo, Podo:
           
“Eu irei.”
           
Havia estática no ar. Como se o ritmo dos acontecimentos estivesse prestes a mudar. Meus amigos estavam acostumados a viver com seus longos diálogos e reflexões, exibições sofistas e que não levavam a resultado algum. Minha revolução mudaria isso tudo e o mundo deles viraria ao avesso.
           
Atravessei a sala até o computador da parede oposta. Abaixo dele havia um módulo de conexão desenvolvido por mim. Tratava-se de uma caixa metálica retangular de um metro de altura. Possuía um topo esférico transparente, preenchido com uma solução azulada. Dentro da estranha máquina, em um nível microscópico, havia milhões de nanorrobôs que ajudariam a sincronizar nossas mentes, de modo que eu pudesse acessar os sonhos de Podo.
           
Puxei o módulo até o centro do laboratório, entre as duas macas. Gardel, sempre solicita e espontânea, preparava as seringas. Dentro da maleta havia as duas drogas que nos ajudariam no processo. Apenas com a dose de morfina correta conseguiríamos acessar o estado de meditação adequado para a sincronicidade, enquanto a naloxona nos resgataria de lá.
           
Efraim, ainda espantado, puxou um dos bancos, sentou-se e suspirou: “isso só pode ser brincadeira”. Ao ouvi-lo tive meu primeiro momento de dúvida. Trabalhava nesse projeto há anos e tinha certeza de que os resultados seriam promissores. Estava empolgado. Porém, havia algo de estranho, ou talvez errado fosse a palavra mais correta. Eu também estava com medo. Algo sobre o motivo daquele experimento parecia errado. Seria egoísmo descobrir por telepatia o íntimo de alguém que já me foi muito próximo? Essa questão me embrulhou o estômago e por isso evitei trocar mais olhares com Gardel. Acho que qualquer ato de descoberta ou criação flerta com o egoísmo.
 
TERCEIRA PARTE: A Mente do Artista
 
           
Deitado na maca, após explicar o procedimento aos três, aguardei Gardel. Cuidadosamente, ela instalou os cateteres que conectavam a máquina dos sonhos a mim e Podo. Senti a picada da agulha no braço esquerdo e, de modo rápido, apaguei.
           
Enquanto vagava pelo túnel escuro do sono, lembrei-me de um período onde a vida parecia ter mais cores.
           
Eu e Podo morávamos no mesmo quarto na época da faculdade. Desde cedo ele já cursava todos os tipos de arte. Minhas escolhas, por outro lado, eram mais nebulosas. Estava apaixonado pelas ciências exatas e quase concluindo meu curso de engenharia, onde havia conhecido Efraim. Porém, pouco tempo depois de concluir o primeiro curso, inscrevi-me para letras e ciências sociais. Acho que minha verdadeira paixão foi aprender um pouco de tudo e talvez por isso tenha me tornado um contador de histórias.
           
Foi em um dia do mês de Março que nós três subimos a superfície. Vestíamos os trajes adequados, com proteção ultravioleta e cilindros de gás. A poluição e os níveis de radiação eram muito altos do lado de fora e as temperaturas variavam de cinquenta a zero grau. Éramos três jovens amigos numa jornada por uma terra desolada, mas não desabitada.
           
Os ventos eram incessantes e por vezes quase desabei com o peso dos cilindros de gás. Estava irritado por fazermos aquele percurso, mas Efraim queria encontrar uma pessoa que fazia pesquisa pela região. Olhei para Podo e através do capacete de vidro vi sua cara entusiasmada exibindo um sorriso de admiração.
           
Entramos em um velho estabelecimento cujas janelas eram protegidas por panos e o reboco parecia prestes a desmanchar. Ali dentro havia uma série de camas de campanha com criaturas humanoides contorcendo-se de dor e desgosto. Era difícil acreditar que aqueles seres certa vez foram cidadãos humanos. Nunca consegui entender porque algumas pessoas não suportavam viver no subsolo.
           
Efraim correu a nossa frente até um grupo de médicos do outro lado da sala. Eles usavam os mesmos trajes que nós.
           
“Amigos, essa é minha companheira, Gardel.”
           
Foi a primeira vez que a vi e, mesmo com todo aquele equipamento, pude perceber sua beleza dentro de mim.
           
O mundo cheio de cores desapareceu da minha frente e eu despertei em uma sala escura, ouvindo um tic-tac e o som de uma respiração acelerada. “Alô!”, gritei para o vazio, sendo respondido pelo eco distante. “Estou atrasado”, ouvi um sussurro logo à frente. Estiquei a cabeça, procurando o dono daquela voz. De súbito, uma luminosidade emanou das profundezas.
           
Tic-tac.
           
Do meio da escuridão, surgiu. Uma pelagem branca e desgrenhada cobria seu corpo. Não devia ter mais de um metro e meio, usando as patas traseiras como apoio. Estava de costas para mim, respirando de modo rápido e nervoso. Tic-tac, “estou muito atrasado”. Meus pés pareciam soldados ao chão e por isso não conseguia alcançá-lo, ou mesmo correr na direção oposta. De repente, ergueu as orelhas pontudas, acho que procurando o som do meu coração, que retumbava assustado. Com um giro rápido, o coelho virou-se em minha direção exibindo o par de olhos assimétricos e a face amassada e disforme.
           
Por um momento achei que aquele seria o fim da minha aventura e que acabaria devorado por aquela criatura. Porém, o animal assustador parecia não compreender minha presença. Uma de suas mãozinhas segurava um objeto dourado. Tic-tac. Levantou-o até os olhos e disse: “estou atrasado”. No outro instante, ele sumiu como um raio e eu desgrudei do chão. Acho que, por fim, estava na mente do artista.
           
Tentei seguir o caminho do coelho em meio à escuridão. Ao contrário do que imaginava, o lugar era um tremendo vazio. Acho que caminhei por horas naquele silêncio denso e contínuo. Havia muita estranheza naquele lugar. A ideia que tinha de um sonho era repleta de formas e sensações, lembranças e imaginação, mas a mente do artista era um vazio. Um formigamento me incomodava, como se alguma coisa investigasse meu corpo. Tinha impressão de que algo perigoso me observava. A solidão parecia ser menos assustadora.
           
Então cheguei a um ponto onde a textura do piso mudou. Levei as mãos até o solo e senti uma superfície úmida e gelada. Sem luz era difícil distinguir que material era aquele. Senti que o chão era sensível a pressão exercida e, dessa maneira minhas mãos afundaram-se até a altura dos ombros. Nessa profundidade toquei em algo áspero e ainda mais gelado. Segurei, puxando com toda a força que possuía. A placa subiu do chão e ergueu-se na minha frente revelando-se uma porta de madeira. Abri e a atravessei sem ressalvas.
           
 
 QUARTA PARTE: Quando Morfeu Revela-se Ícelo
 
 
            Não esperava por isso. Abri os olhos e enxerguei o teto do meu laboratório. Alguém gritava ao fundo, mas tudo permanecia fora de alcance. Será que ainda sonhava?
 
            Ergui a mão até a altura dos meus olhos. Ela era uma sombra escura e cheia de espinhos, translúcida e quase irreal. Com esforço, sentei na maca e verifiquei o ambiente. O mundo estava diferente. Havia cores vivas em tudo e fitas orgânicas dançavam pelo ar. Essas fitas eram como teias de aranha conectando todas as coisas a minha volta. Algumas saiam de mim e seguiam até os computadores, os módulos e a maca em que estava. Ao olhar para ela vi meu corpo ainda adormecido. Senti um vazio dentro de mim, algo me fisgava, tentando me puxar para a realidade. Estava ficando mais pesado e à medida que despencava rumo à maca, os sons ficavam mais claros.
 
            Abri os olhos e enxerguei o teto do meu laboratório. Havia gritos desesperados: “Efraim, pegue a naloxona!”.
 
            Podo não havia despertado. Estava convulsionando na maca ao lado e isso era impressionante! Não o fato de o meu amigo ter um ataque, mas a percepção que tinha sobre isso. As fitas coloridas dançavam frenéticas sobre ele. Elas saiam de seu corpo tentando conectarem-se as fitas que saiam de Gardel, como se buscasse socorre. Ao mesmo tempo, uma espécie de nuvem azulada flutuava sobre Podo. Era disforme e agitada. Lutava para voltar ao corpo sobre a maca.
 
            Efraim buscava desesperado pela seringa na maleta médica. As fitas dele tremiam em volta de seu corpo.
 
            Levantei, removendo o cateter que me prendia.
 
            “Fique na maca, Hugo, já vamos resolver isso!”
 
            Não estava preocupado. Tinha certeza do que deveria fazer e porque estava ali. Caminhei meio cambaleante em direção à outra maca, coloquei uma mão sobre a cabeça de Podo e disse: “Vai dar tudo certo, amigão”. Sem cerimônias, segurei a nuvem azul sobre ele e removi as fitas que ainda estavam presas ao corpo. Quase no mesmo instante, seus movimentos cessaram.
 
            Gardel me observou espantada, sem entender o que havia feito. Notei que as fitas dela encolheram, tentando manter-se afastada de mim.
 
            “Você o matou! Assassino!”, era Efraim no círculo de negação. “Seu egoísta de uma figa! O que estava pensando quando montou essa máquina?”. Passou por mim e correu para ficar entre eu e Gardel. Isso era do feitio dele, ser o herói.
 
            Fitas rosadas emanavam dele, cobrindo Gardel com uma espécie de manto protetor.
 
            Estava testemunhando as ações deles em outro plano. As fitas possuíam um significado muito específico e traduziam os sentimentos e dinâmicas. Tomei conta de que havia trazido algo comigo. A viagem para dentro do mundo dos sonhos, o inconsciente coletivo, me revelou o que queria: uma nova percepção.
 
            Ergui minhas mãos e da ponta dos dedos conjurei dez fitas pretas que dançaram em direção a Efraim. Meu velho colega de engenharia me ameaçava com uma seringa e não tinha noção do que estava prestes a atacá-lo. Observou minhas mãos altas com um semblante curioso e quando minhas fitas penetraram sua pele, a seringa de segurava despencou.
 
            Efraim caiu de joelhos a quatro passos de mim. Minhas fitas retalhavam sua existência na outra dimensão e pedaços de nuvem rosa voavam em todas as direções. Percebi a falta de coragem dele quando o manto que protegia Gardel diminuiu de tamanho, tentando a todo custo proteger a si próprio.
 
            Sentia o poder crescendo dentro de mim. Eu era a próxima revolução!
 
            O tempo parou subitamente. Algo estava errado. Minhas fitas começaram a encolher, sendo fisgadas de volta para os dedos de onde partiram. Tentei me virar, mas o corpo não obedecia. Então uma superfície azulada cobriu meu campo de visão. Olhei para meu tronco a tempo de ver a lança azulada atravessando a essência do meu ser. Jamais imaginei que Podo pudesse fazer algo assim comigo. Ele que sempre foi um homem que gostava de experiências diferentes e outros modos de ver a vida. Meu grande amigo revelou-se um traidor.
 
            Em meu último esforço, joguei a última moeda e suguei Podo para dentro de mim, levando-o ao meu inconsciente.
 
            Em meio à escuridão e silêncio, às vezes quebrados pela passagem de estranhas criaturas, prendi Podo do outro lado da porta para meu inconsciente. De vez em quando ele a força, tentando sair. Porém, permaneço como um paciente vigia, protegendo o que resta de mim de seus ataques. E, desse modo, termino exatamente como iniciei: “Às vezes gosto de ficar imaginando até onde minhas escolhas do passado, se feitas cautelosamente, poderiam alterar aquilo que chamo de presente. Talvez isso contribuísse para que não vivesse tão recluso ou mesmo desfizesse os erros que cometi. Lá fora me chamam de assassino. Na verdade, não conseguem entender”.
           
Tema: Sonhos
Total de Palavras: 3490 Palavras

 

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