NIKITA - A ILHA DOS MORTOS
 
(...)

   Nuvens negras como penas de corvos davam ao céu da manhã uma aparência de noite, e a neblina gélida das primeiras horas do dia envolvia tudo como um véu. Em um antigo sanatório, localizado na ilha grega de Nikita, perto de Atenas; um médico psiquiatra caminhava de um lado para o outro, observando seus pacientes dementes e insanos, como uma serpente à espreita aguardando para dar o bote. Ele usava um jaleco sujo, surrado pelo tempo, e exibia no rosto um olhar tão louco quanto os daquelas almas infelizes, esquecidas por Deus e abraçadas pelo diabo naquele lugar maldito.

   Ali, naquele triste lugar, o doutor era Deus, mas também era o diabo. E pouco se sabia dele, apenas que era o médico da ilha.

   O ano era 1930!

   Apesar de ainda ser dia lá fora, por trás dos muros do sanatório sempre parecia noite. Uma vez confinados ali, pacientes e funcionários nunca mais viam a luz do sol, nem os campos verdes e nem o azul do céu. Tudo o que eles conheciam eram as trevas e o doutor. E muitos dos que estavam lá desejavam ser abraçados por aquela que vaga de dia e de noite à procura de quem levar, a morte. Mas sempre era o doutor que aparecia, oferecendo seu abraço torturador, de quem não podiam se desvencilhar.

   Os funcionários que iam trabalhar na ilha, eram selecionados rigorosamente pelo próprio médico e a palavra final era sempre dele. Eles tinham direitos básicos como salário, moradia, alimentação e vestimenta. Mas em hipótese alguma podiam deixar a ilha sem a autorização do doutor ou relatar a alguém o que acontecia no lugar. A única comunicação que eles tinham com o mundo exterior era através de cartas enviadas para suas famílias, e essas passavam pela vistoria do doutor. E uma vez há cada ano podiam deixar a ilha para visitar seus parentes. Alguns até compactuavam com as atrocidades cometidas pelo infame médico.

   Gritos de lamentos ecoavam pela noite, como um canto insano, entoado por almas torturadas num inferno sem fim, mas sempre se renovava dia após dia. O doutor vagava pelos corredores escuros do sanatório, como um fantasma serpenteando pelas sombras. Os gritos de desespero dos pacientes pareciam música para ele, que exibia um sorriso de satisfação diabólico no rosto.

   O doutor começou a subir as escadas rumo ao alto da torre da capela de orações que ficava numa área afastada do sanatório, de onde tinha uma visão sinistra daquele inferno. O céu era tão negro quanto a própria escuridão, nem a lua ou as estrelas brilhavam naquele maldito lugar. E a temperatura era sempre extremamente fria, devido a ausência do calor do sol durante o dia e o excesso de umidade da água do mar durante a noite!

   O médico louco conhecia bem a história daquele lugar.

   Uma história bem antiga!

   A ilha era um local amaldiçoado, marcardo por séculos de morte, de loucura e de muito sofrimento. E tida por muitos como um lugar mal assombrado, onde se podia ouvir vozes, escutar passos nos corredores e sentir a presença de pessoas próximas quando não havia ninguém por perto. Pacientes relatavam que ouviam sussurros ao pé do ouvido, sombras vagando pela ilha, gritos e lamentos das almas dos mortos presas naquele lugar. Mas ninguém acreditava neles, afinal, eles eram loucos.

  Funcionários também viam e ouviam coisas, mas não se atreviam a contar isso pra ninguém, eles tinham medo de serem chamados de loucos e serem internados no sanatório. Todo esse medo tinha um fundamento, eles temiam o doutor e seus métodos de tratamento torturosos.

   O começo dessa obscura história, diz que a ilha era um local para onde os gregos antigos levavam os corpos dos soldados mortos em batalha e também dos inimigos para que fossem cremados lá, devido a distância da ilha para o continente. Muitos anos depois, a peste bubônica chegou e começou a dizimar os países da Europa e em Atenas não foi diferente. A praga avançou e contaminou muita gente, e muitas pessoas pereceram. Como a doença não tinha cura, rapidamente toda a cidade estava contaminada e os cadáveres iam aumentando. Com o tempo já não existia lugar suficiente na cidade para enterrar os mortos, e os corpos iam se empilhando como montanhas de cartas em cada rua, em cada beco e em cada esquina, e isso gerou mais contaminação e mais morte.

   Foi quando se lembraram da ilha, que era afastada e que já havia sido usada para queimar corpos no passado. Foi quando começaram a levar os corpos de todas as vítimas da peste para Nikita, para que fossem cremados lá. Então, todos os dias partiam dezenas e dezenas de barquinhos lotados de corpos rumo a ilha, onde eram incinerados em enormes fossas. Com o tempo, outras partes da Europa também começaram a levar para lá os seus mortos. E a doença não dava trégua, e a solução encontrada foi levar para lá também todos os vivos e todos os doentes, ou qualquer pessoa que apresentasse qualquer sinal de doença.

   Mesmo que não se tratasse da peste, um simples espirro, uma gripe ou um resfriado e a pessoa já estava condenada para ser levada para ilha de Nikita. Lá, mortos, vivos, doentes e sãs, que certamente também iriam ficar doentes, conviviam  no mesmo lugar. Todos os dias, homens, mulheres, crianças e velhos eram arrastados, e ainda vivos, eram lançados às piras crematórias.  A ilha vivia envolta por uma nuvem negra de fumaça dos corpos que eram queimados dia e noite sem parar. Quando a peste passou, Nikita ficou um tempo esquecida, mas não pra sempre.

  Logo a ilha seria usada novamente, dessa vez para esconder uma parte da humanidade que ninguém queria por perto, e foi construído lá um sanatório para abrigar pessoas que sofriam de transtornos mentais.

  Os gritos de horror vindos dos pacientes se dissiparam da mente do doutor, e essa ficou livre para pensamentos bem mais sinistros. A torre da capela era na verdade uma câmara de tortura para onde o médico levava seus pacientes para serem usados em experiências, que segundo ele seria para achar a cura de suas doenças. Os doentes passavam por verdadeiras torturas e eram submetidos a uma série de horrores desumanos. Choques elétricos, resistência à dor, lobotomia e muitas vezes mutilação, eram as maneiras que o infame médico encontrava para se divertir nos seus momentos livres. O olhar enlouquecido do homenzinho se tornou mais louco ainda, e uma gargalhada demoníaca ecoou no ar se confundindo com os lamentos daqueles pobres infelizes abaixo da torre. O doutor olhou para trás e um paciente estava pendurado por correntes diante dele. O olhar do homem era de medo e desespero diante daquela sinistra figura de jaleco sujo e maltrapilho.

   O doutor caminhava lentamente na direção do paciente, que tremia de medo, deixando uma urina amarelada escorrer por suas pernas formando uma poça no chão. O homem estava só pele e osso, e por conta do seu estado lastimável sua real idade já não podia ser definida com clareza. Poderia ter vinte ou cem anos que não faria diferença.

   O olhar do doutor se cruzou com o do paciente.

   Um era puro terror!

   O outro puro sadismo!

   -  Vamos começar. - disse o doutor, abrindo um largo sorriso maquiavélico no rosto.

   Um grito desesperado de angústia, medo e dor cruzou o ar, penetrando na mente de todos dentro do sanatório. Pacientes e alguns funcionários que não compactuavam com as atrocidades do médico tremiam paralisados de horror diante de tanta monstruosidade. O doutor ficou parado, olhando fixamente o que  restou do paciente pendurado por correntes. Seu velho jaleco estava banhado de sangue e seu rosto salpicado de suor. Na sua mão direita ele estava segurando um bisturi também sujo de sangue, e na esquerda o maléfico doutor segurava tiras de couro retiradas do corpo do homem que ainda vivo ansiava pela chegada da morte o mais breve possível. Mas ela veio pelas mãos do doutor, que com um único golpe rasgou a garganta do pobre homem com o bisturi. O líquido vermelho e viscoso que saia do corpo já sem vida do paciente serpenteava pelo chão como um rio em busca do mar.

   Um outro paciente observava tudo, preso numa jaula como um animal acuado. O médico se virou na sua direção e apenas o encarou. Ele já não sorria. Sua expressão agora era seria e fechada. O doutor deu as costas e deixou o lugar, jogando as tiras de couro de sua nova vítima no chão.

   A noite se fora, mas não fazia diferença. As trevas eram rainha naquele lugar. O cheiro pútrido de morte também era companhia constante no sanatório, e todos já estavam acostumados com aquele odor desagradável. Dois funcionários cruzavam o pátio carregando o corpo da nova vítima do doutor coberto com um pano, diante dos olhares de horror dos pacientes do lugar. Eles jogaram a carcaça do homem numa vala rasa, onde outros corpos apodrecidos já se encontravam lá dentro. Na ilha não se fazia mais fogueiras para cremar os mortos, mas aquela nuvem negra espectral dos corpos de milhares de pessoas queimados ao longo de séculos, continuava lá, como uma herança maldita do lugar.

   Uma jovem enfermeira subiu até o alto da torre de orações, onde funcionava também a câmara de tortura do doutor. Ela levava um copo de leite e torradas para o paciente enjaulado.

   - Billy, meu irmão, eu disse pra você não enfrentar o doutor. Eu te pedi tanto meu irmão. - disse a enfermeira, se aproximando da jaula e acariciando o rosto do prisioneiro.

   -  Minha vontade é de matar aquele demônio, irmã. Se eu pudesse ao menos sair dessa maldita jaula. - o homem estava  agitado, e segurava as barras de ferro da jaula como se desejasse quebra-lás com as próprias mãos.

   -  Tenha calma meu irmão, eu vou tirar você daqui essa noite, já tenho um plano. - a moça apertava com carinho as mãos do irmão. -  Agora eu preciso ir ou o doutor pode desconfiar de alguma coisa.

   A enfermeira deixou o local. Seu nome era  Ana, e seu irmão se chamava Billy. O rapaz foi parar ali após ser acusado pelo assassinato de uma uma garotinha de 8 anos. O sanatório não era um lugar apenas para loucos, ele também abrigava criminosos, psicopatas, maníacos ou qualquer tipo de pessoa indesejável. O jovem era inocente, mas preso ali não teria como provar isso. Foi aí que sua irmã conseguiu uma vaga de enfermeira no sanatório da ilha de Nikita, para ajudar o irmão, mesmo sabendo que corria o risco de nunca mais sair daquele lugar. Agora ela tinha um plano, e precisava contar com a ajuda de outros pacientes e até funcionários, e contar também com a sorte.

   Assim que saiu da torre, Ana foi abordada pelo paciente Klaus Herman, um maníaco homicida, acusado de vários assassinatos contra mulheres, na sua maioria prostitutas. Ele era a ajuda de Ana ali dentro para liberartar seu irmão. O plano era simples, um paciente iria começar uma confusão no meio do pátio para chamar a atenção de todos, principalmente a do doutor. Nesse intervalo de tempo, Ana iria até a torre e libertária seu irmão Billy. Ela e seu irmão iriam então até o outro lado da ilha, onde um barco estaria esperando por eles. Em troca da ajuda, os dois levariam Klaus com eles.

   O médico lunático observava do alto da torre da sinistra capela da morte toda a movimentação dentro do seu circo de horrores particular. De lá de cima, ele viu quando um paciente esquizofrênico começou a ficar agitado no meio do pátio. O homem estava agressivo e se debatia de um lado pro outro. Os funcionários temiam se aproximar, com receio de serem atacados. Ana e Klaus observavam tudo com certa expectativa. De repente, o homem parou de se agitar e seu olhar alucinado ficou fixo numa única coisa: o doutor parado a sua frente. Um temor tomou conta de sua alma angustiada e ele saiu correndo para dentro do sanatório. O médico foi atrás!

   Ana aproveitou esse momento de distração do doutor e correu até a torre onde seu irmão estava preso. Chegando lá, a moça começou a procurar pela chave da jaula.

   Enquanto isso, o paciente escalou uma parede e alcançou o telhado do sanatório. O doutor voltou ao pátio, onde funcionários olhavam a cena do homem no telhado com apreensão, e os pacientes começavam a se agitar fazendo um verdadeiro burburinho. O doutor começou então a falar com o paciente, pedindo que ele descesse do telhado que nada de mal lhe aconteceria. Mas o homem, mesmo louco, sabia que todas as palavras do médico eram mentiras. Então, ele olhou pro alto, na direção do céu truvo e se jogou. O doutor fechou as mãos com toda sua força e uma fúria animalesca tomou conta do seu espírito. Sua face se transformou mais uma vez.

   O médico lançou mão de uma camisa de força que um funcionário segurava, e a envolveu como um chicote e começou a bater no corpo do paciente morto com extrema fúria. Ele saiu arrastando o cadáver rumo a torre da capela, desferindo todo tipo de ofensa contra o morto. Lá no alto da torre, onde funcionava sua câmara de tortura, e onde todos temiam ir parar, o doutor começou a dar choques elétricos no cadáver do paciente. Depois, o médico caiu no chão, totalmente esgotado. Sua respiração estava ofegante e seu rosto banhado de suor!

  Nesse momento, o doutor olhou na direção da jaula, ela estava vazia!

    A noite chegou rápida e trouxe com ela uma densa neblina, que  envolveu todo o lugar. A atmosfera no sanatório se tornou ainda mais sinistra. No pátio, vozes de lamentos se faziam ouvir e sombras espectrais se moviam em todas as direções, como casais de namorados dançando para o diabo. Lá dentro, era dada a ordem de libertação e a rebelião começou. Klaus havia mudado os planos e traído Ana. Os pacientes começaram a colocar fogo em seus colchões e a atacar os funcionários. Logo, labaredas de fogo se espalhavam por todos os lugares, como um rastro de pólvora, consumindo tudo.

   Ana e seu irmão Billy olhavam a tudo atônitos. Não era para ter sido desse jeito, era pra ter sido apenas uma missão de resgate. Mas tudo saiu errado e o cenário agora era de caos e violência. O sanatório ardia em chamas, enquanto pacientes e funcionários lutavam por suas vidas, agora não contra o doutor, mas contra o fogo que consumia o lugar.

   Ana e Billy saíram pra fora, para longe das chamas. Nesse momento, seus olhares se cruzaram com os do doutor, que exibia um sorriso de confiança no rosto. Logo o médico estava cercado por todos aqueles que ele torturou durante anos. E seu sorriso de confiança se transformou numa careta de angústia e medo.

   Foi nesse instante que surgiu diante de todos, no meio do pátio, os  fantasmas dos pacientes vítimas das atrocidades do médico durante anos, lamentando e gritando por vingança. Eles já estavam cansados e a maldade do doutor havia chegado a um grau intolerável. Eles clamavam para que fosse feita justiça. Uma fúria então tomou conta dos rebelados e eles agarraram o doutor e o arrastaram na direção da torre da capela. Klaus liberava a revolta.  Ana e seu irmão Billy tentaram conter a ira dos revoltosos, mas tudo foi em vão. Eles foram agarrados e contidos.

   - Não é nada pessoal, Ana, é apenas justiça. -  disse Klaus, estampando no rosto um sorriso de vitória.

   Ao chegar no alto da torre, Klaus encarou o doutor com um ódio demoníaco no olhar. Ele era o paciente preferido nos experimentos sádicos realizos pelo médico. E aquilo ficou gravado na sua alma como brasa em chamas. E o desejo de vingança só crescia dia após dia dentro dele. Klaus agarrou o doutor e o atirou lá de cima de encontro ao chão e a morte. Mas ele não morreu na queda.

   Ainda vivo, o homem viu brotar do chão uma fumaça tão negra quanto a atmosfera daquele lugar, enquanto se retorcia de dor. A fumaça tinha  a forma de duas mãos gigantes. Elas o envolveram e o sufocaram!

   Ninguém acreditava muito no que estavam vendo, aquele homem bestial estava morto, esganado por mãos gigantes em forma de fumaça negra. Quando olharam pro pátio, os fantasmas daqueles que morreram vítimas da crueldade insana do doutor haviam sumido, levando com eles a densa neblina que envolvia o sanatório. Eles estavam livres do doutor, e agora, pelo menos na morte podiam enfim descansar em paz. O corpo do médico foi levado até uma fornalha antiga onde foi cremado. A fumaça  que saia da chaminé era tão negra quanto aquela que o matou.

  Na manhã seguinte, Ana e seu irmão Billy olhavam incrédulos para as paredes do antigo sanatório, que ainda ardiam em chamas, enquanto deixavam a ilha. Eles não podiam acreditar que estavam livres das atrocidades daquele médico louco. No céu, ainda podiam ver a nuvem de fumaça espectral pairando sobre a ilha. Mas não era uma fumaça real, era uma fumaça de energia espiritual residual, já que lá não se fazia nenhuma fogueira há muito tempo. Uma herança que Nikita vai levar para sempre.
  
 
                                                    FIM
 
                           TEMA: Prisioneiros / Em Família
                                   Total de palavras: 2.879
 


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