RATOS PELO CORREIO 

'Garranchos apenas, era o que eu via naquele papel ensebado. Ameaças em letras garrafais, você realmente havia perdido a noção do decoro, do espaço que não era mais seu, nem mesmo a si mesmo respeita, uma lástima. Nem me lembro mais, quantas cartas ameaçadoras como esta já me enviou, só o que me chama atenção é o raio do papel sebento,  mas, logo jogava fora a carta e voltava minha atenção para coisas realmente importantes e sadias, nossa relação estava fadada ao fim sem mesmo ter esquentado praça, como conceber que isso deixaria você em crise existencial num nível assustador, cheio de ameaças, mandando ratos mortos pelo correio, já fiz até queixa na delegacia, mas, não me deram muita atenção, somente fizeram o registro, pra eles isso logo passaria, consideravam cartinhas e ratos como atitudes imaturas. Eu tentava não me preocupar com isso, pois você não se aproximava de mim, só enviava ameaças em escrita grotesca e ratos mortos, os quais meu porteiro já descartava sem me entregar. 

Numa sexta-feira, perto das onze da noite, eu já pronta pra sair com as amigas, íamos conhecer uma boate nova no centro da cidade, marcamos de nos encontrar na portaria do meu prédio, como eu não bebo, seria a motorista da vez, aquela amiga que deixa todo mundo em casa em segurança, curte a noitada sem cair na esbórnia. Tudo certo, tudo combinado, boate legal, conhecemos uns carinhas interessantes, em determindo momento, foi pedida uma nova rodada de bebidas e eu só na água ou energético, a garçonete chega com drinks coloridos e minha inóspita água mineral, só que quando ela me entregou a garrafinha deixou junto uma caixinha azul com laço de fita e um bilhete em papel sebento, aí eu realmente fiquei assustada, avisei à garçonete o que era a caixinha e que ela jogasse tudo fora, caixa e bilhete, numa lixeira fora da boate, contei para as minhas amigas, que sabiam do meu drama, elas ficaram apreensivas e reviramos a boate a cata do dono dos ratos, mas, nada encontramos, o clima de festa arrefeceu, resolvemos ir embora.

A noite já estava arruinada, não consegui dormir, praticamente desmaiei com o dia quase clareando, acordei com dor de cabeça, fui tateando até a cozinha morta de sede, tinha aspirina no armário, quando abri a porta para pegar o remédio, encontrei outra caixinha com laço de fita, gritei tanto que me faltou o ar, como isso era possível, dentro da minha casa!
Abri todas as portas, queria sentir o ar penetrando os poros da casa, o medo começava a interromper meu raciocínio. Esperei o horário de trabalho, fiz um acordo com a empresa, fechei a conta no banco, vendi as joias pelo primeiro valor que me ofereceram, entreguei as chaves do apartamento funcional no departamento financeiro da empresa, coloquei minhas coisas em malas e sacolas, me despedi do porteiro, passei numa loja e comprei um novo celular com novo número, coloquei todas as coisas que pude dentro do carro, passei num posto de gasolina enchi o tanque e segui reto por uma estrada, mirando o interior, não sabia para onde iria, nem lembrei de família, amigos, nada, em minha mente só apareciam caixinhas com ratos mortos, segui como que fugindo daquele absurdo todo. Depois de reabastecer mais uma vez, resolvi verificar aonde tinha chegado, em que cidade estava. Descobri que estava muito longe, não havia sentido fome ou sede durante todas as muitas horas em que dirigi, só as pernas e pés doiam bastante, resolvi parar em qualqyer hotelzinho ou pousada, precisava descansar, queria um banho e muita água, fome não sentia, mas, como dizia sua falecida mãe
- Saco vazio não fica de pé
Na lojinha do posto comprei passas, amendoim, chocolate e barrinhas de cereal, tinha que ter energia, para pensar no que faria daquele surto pra frente. 

Uns dois quilômetros à frente achei um hotelzinho simples, mas simpático, parecia estar no meio de uma estância, resolvi passar a noite por ali, estacionei, peguei coisas básicas no carro e os valores que tinha comigo, para recomeçar a vida em outro lugar. O quarto era confortável, tinha banheira o que foi ótimo, relaxei bastante, comi uma barra de cereal e um suco de lata  que  tinha no frigobar, realmente estava sem fome, só sede, bebi uma garrafinha d'água e deitei. Tive um sono sem sonhos, acordei cedo, fiz a rotina básica, banho, café da manhã, pagar conta e pegar novamente a estrada para algum lugar. Não dirigi muito mais, a primeira cidadezinha que encontrei era gracioaa, bem pequena, era cedo, procurei me informar se havia alguma casinha para alugar, era só pra ela, poderia ser bem pequena, o povo era atencioso, logo um casal de comerciantes me indicou uma senhorinha que alugava casinhas de vila e por sorte, tinha uma livre bem bonitinha, quarto, sala, copa/cozinha, varanda e um quintalzinho nos fundos com uma laranjeira frondosa, toda carregada, o preço era ótimo fechei logo o negócio, para minha surpresa a casinha já tinha cama de casal, armário, fogão e duas cadeiras de balanço adoráveis na varanda, fiquei radiante, pelo menos alguma coisa boa acontecia na minha vida em semanas.

Curti a nova casa até tarde, chupei laranja do quintal, a cama era gostosa, dormi como um anjo, nem mesmo pensei em ratos mortos. Peguei a bolsa e fui perguntar aos comerciantes simpáticos, os mesmos que me indicaram a senhorinha que me alugou a casa, para saber onde poderia comprar uma geladeira, minha sorte estava em alta , eles tinham uma usada e em bom estado, funcionando perfeitamente, o preço era bom e eles iriam entregar lá, topei na hora, aproveitei para fazer umas comprinhas ali mesmo, pois parecia ser um armazém, mercado, tinha material de construção, açougue e sinda vendiam tênis e chinelas, realmente eu estava no interior. 

A geladeira chegou junto comigo, os entregadores eram filho e sobrinho dos amáveis comerciantes, tão educados que me auxiliaram enquanto guardava as compras, fiz um café em agradecimento, dia feliz, tudo dera certo. Ao cair da tarde bebendo um chá verde balançando na minha linda cadeira, fiquei observando as outras três casinhas da vila, estavam vazias no momento, a senhorinha me dissera que, só no Verão os donos apareciam, até lá eu era a única por ali, tudo bem, o que eu mais precisava era mesmo de paz. Quando uma nova, linda e radiante manhã chegou, foi de novo comércio para ver se achava algum tipo de emprego, poderia dar aulas, era boa com contas e números, cozinhava bem de verdade, quem sabe conseguiria alguma colocação. Como a sorte estava galopando a meu favor, consegui uma vaga de professora auxiliar na escolinha infantil da congregação, o salário era pequeno, mas, não teria mesmo onde gastar naquele lugar e ainda tinha minhas economias, o dinheiro das joias, o valor da rescisão, enfim, viveria muito bem.

O primeiro dia de aula foi incrível, até a hora do recreio, quando uma linda lourinha de cabelinhos cacheados, me entregou uma caixinha azul com laço de fita e um bilhete sebento, dizendo que um moço pela grade do pátio, pedira para que entregasse a ela, para não assustar a menina, joguei numa lareira a caixinha azul e enquanto assistia ela queimando, seu peito arfava desesperadamente, de novo não!

Depois da aula, voei pra casa, me embrulhei num cobertor na cadeira de balanço da varanda, sacudindo a cabeça violentamente, meu Deus! Me ajude, implorei, iso não podia estar acontecendo, como ele me descobrira ali?
Muito, muito tarde mesmo, plena madrugada,, arrumei todas as coisas no carro, separei o valor do aluguel, assim que amanheceu, deixei com os simpáticos comerciantes o dinheiro casa, para que eles entregassem à senhorinha, dei adeus e parti ouvindo o homem gritando
- Chegou pelo correio..... uma......caixinha.... pra.....você.......

Dirigi como uma doida, nem sei por onde passei, só via ratos, ratos e caixinhas azuis com laços de fitas, a gasolina acabou à noite, numa estrada no meio do nada, tentei ligar o celular, estava sem sinal, olhei para estrada escura por horas até que avistei uma claridade azulada se aproximando, cena aburda eu via, uma caixa azul enorme com laço de fita 'andando' em minha direção com a tampa aberta como uma grade boca, cuspindo partes de ratos mortos, parti que nem louca arrancando as roupas pelo caminho, gritando
- Me tem agora, sou sua, acabe logo com esse inferno
Eu corria, corria e não alcançava a grande caixa com ratos mortos, sentindo o vento frio enregelar meus ossos, já nem tinha voz na garganta e corria, corria...'



Hoje passados quase vinte anos, no sanatório Saint Louis, onde trabalho, escuto pela milésima vez, essa mesma história dos lábios franzinos de uma velhinha louca, que fora recolhida há muitos anos atrás, nua, com marcas sangrentas ressequidas de mordidas de ratos, largada à beira de uma estrada, pensamos que ela não sobreviveria, ela não pode nem ouvir falar em bilhete, ratos mortos, caixa azul ou laços de fita, ela surta de tal maneira que é preciso sedá-la, pobre criatura, a única realidade da qual ela se lembra, é uma horrível história, possivelmente não era verdade aquele relato tão fantástico.




 
Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 19/02/2017
Reeditado em 25/02/2017
Código do texto: T5917063
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