Dona Morte

Era um lugar aparentemente calmo. Pelo menos naquele momento. Havia uma mulher deitada na cama de hospital na minha frente. Ela estava ligada a uma série de aparelhos que a mantinham viva. Eu estava apenas observando. Esperando pelo momento certo. Quando ela finalmente se daria conta de que seu corpo jamais tornaria a acordar, mesmo que ela insistisse em ficar nele. Eu a vi sair e voltar inúmeras vezes. Parar diante de si e olhar para o próprio corpo com uma expressão desolada. Fez isso por dias, mas eu não saí do meu posto. Continuei observando sem dizer uma única palavra. Sem me apresentar, sem fazer um som sequer. Só a olhei. De vez em quando eu notava que ela olhava pra mim, mas também nada dizia. Parecia temer a resposta mais que óbvia. Depois de pouco mais de uma semana, depois de inúmeras visitas de parentes e amigos que a encorajavam a voltar a viver, eu a ouvi falar pela primeira vez se dirigindo a mim.

- Eu estou morta, não estou?

Mesmo que falasse comigo, ela não me olhava. Apenas balancei a cabeça afirmativamente. Neste momento ela me olhou.

- Você veio me buscar?

Novamente respondi com um leve aceno de cabeça. Ela pareceu entender e deu um leve sorriso melancólico. Depois começou a chorar de leve e por fim se ajoelhou no chão.

- Mas e meus filhos? Meu marido? Não posso! Meu corpo ainda funciona! Por que então?!

Seu choro adquiriu um tom desesperado, quase acusativo, como se eu tivesse culpa de alguma coisa. Sinceramente, nunca gostei de espíritos que faziam chilique, mas isso era pessoal. Apenas continuei encarando a jovem desesperada na minha frente. Assim que ela se acalmou um pouco, achei melhor falar.

- Seu espírito não tem mais ligação com seu corpo. É chegada sua hora.

- Não. Meu corpo ainda funciona! Eu estou respirando. Veja!

Ela se levantou e começou a olhar para seu corpo ali deitado, com o peito subindo e descendo de forma ritmada. Eu suspirei e olhei para o corpo também.

- São as máquinas. Elas mantêm seu corpo funcionando, mas você não está mais viva.

A moça riu e olhou para mim com uma expressão de indignada.

- E quem é você para me dizer tal coisa? Está ai parada há dias e nem sequer falou comigo! Você está me sugando, é isso? É um espírito ruim? Que merda você quer?! – A última frase foi gritada pra mim.

- Eu sou o que vocês chamam de Morte. Mas se preferir, pode me chamar de Lumen.

A expressão dela mudou rapidamente para um leve espanto. Eu não podia culpa-la. A última coisa com a qual eu me parecia era a Morte. Eu era uma mulher na faixa dos 20 anos, loira de olhos cinzas. Estava usando uma capa preta, é verdade, mas não era assustadora, não era uma caveira carregando uma foice. Apesar de eu ter uma. Meu rosto estava pálido e tinha leves olheiras, mas nada me assemelhava a Morte que talvez ela estivesse imaginando.

- E vai fazer o que comigo? – Ela conseguiu dizer em um tom baixo e assustado.

- Levar você para onde deve ir. Você não pode mais ficar aqui.

- O céu?

Ponderei sobre o assunto, assenti e disse.

- Como você quiser chamar. Posso lhe oferecer um adeus, se quiser.

- O que quer dizer?

- Entrar nos sonhos de seus entes queridos, para apenas se despedir.

Ela assentiu levemente com lágrimas nos olhos. Encarou seu corpo uma última vez e finalmente me acompanhou. Comparado a outras almas, a dela foi relativamente fácil. Eu só devia entrega-la e depois disso, era só partir para a próxima alma.

Não era a única trabalhando, claro. Havia diversos outros iguais a mim, e mesmo com tantos de nós eu quase nunca ficava sem ter o que fazer. Sempre havia pessoas morrendo que precisavam de auxílio. Nós podíamos ser considerados suas luzes no fim do túnel. Pelo menos quando vocês não chegam ao túnel sozinhos. Ao terminar meu trabalho, podia descansar um pouco numa sala preparada para nós. Lá eu encontrava os outros. Homens e mulheres de todas as idades, crianças, velhas que pareciam bruxas, homens com asas, caveiras. Todos eram a Morte. Nosso trabalho era o mesmo. Recolher as almas dos desafortunados e leva-las para a luz. Por essa razão, tínhamos uma pequena regra. Abandonar todo e qualquer sentimento. Não podíamos ser comovidos pelos mortos ou chantageados por eles. Os que tentavam, geralmente não iam para um lugar muito agradável. Nesse caso, havia “Mortes” mais qualificadas para fazer este tipo de trabalho.

Enquanto eu divagava, senti algo tocar meu ombro. Um toque frio e duro que, se eu fosse humana, teria me arrepiado. Olhei para meu ombro e vi uma mão esquelética. Seu dono estava atrás de mim. Me olhava com aquele rosto sem olhos, desprovido de músculos faciais e pele que me impediam de saber o que ele pensava. Um amontoado de ossos vestindo uma capa preta e segurando uma foice duas vezes o seu tamanho. Um leve movimentar de mandíbula me fez acreditar que ele estava tentando “sorrir”.

- Lumen. – Disse com uma voz sombria e arrastada. – Vejo que chegou cedo. Hehe. – Seu riso foi seco e asqueroso. Fiz uma careta para ele enquanto era virada para que ficássemos frente a frente.

- Grim.

- Boa noite! Soube que pegou uma alma interessante ontem.

Grim Reaper, talvez ele fosse a Morte mais assustadora de todas. Ele era tudo que eu fui ensinada a não ser. Grim era sarcástico, cruel e manipulador. Gostava de se divertir com as almas que buscava. Ele fazia barganhas, trocas e acordos e nunca era repreendido. Admito que sentia um único sentimento. E era o medo de Grim.

- Foi só uma alma normal. Uma moça.

- Uma moça amargurada! – A voz dele se sobrepunha a minha, já que eu falava baixo.

- Era só mais uma alma, Grim. Fiz meu trabalho como ordenado.

- Que pena... Talvez ela tivesse dado uma boa barganha.

Grim começou a brincar com a ponta da foice, como se me ignorasse. Achei melhor deixa-lo e me virei para ir embora, já que eu já tinha outra alma para buscar. Fui surpreendida por sua mão esquelética me puxando de volta e colocou sua face tão perto da minha, que meu nariz tocava seu crânio exposto.

- Se sentir sentimentos conflitantes no seu próximo trabalho, Lumen, me entregue o mesmo...

Grim me soltou e foi embora e eu parti para meu próximo trabalho. Iria ignorar as ordens dele, é claro. Ele não mandava em mim. O Cavaleiro mandava. Ele não podia fazer nada comigo. Parti para a próxima alma, mais uma criança vítima da fome. Não gostava de pegar almas de crianças, mas devia me lembrar: Não se envolva, não se emocione, é apenas seu trabalho. Sim, era só meu trabalho. Não sinta raiva de mim. Eu só estou ajudando. Fazendo o que é certo. Almas precisam ser recolhidas. E este é o meu trabalho, afinal... Eu sou A Morte.

Stephanie Telmo
Enviado por Stephanie Telmo em 14/02/2017
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