Vozes

¬Londres, 1888

“Maldição, estou congelo nessa merda. ” Pensava Mary enquanto tentava, inutilmente se cobrir com suas poucas roupas, ossos do ofício. “Não irá aparecer nenhum cliente nesse frio maldito, ninguém é louco assim, mas eu tenho que ficar, se o chefe souber que eu sai daqui... Droga”.

A noite passava e a lua cheia subia no céu, nenhum cliente aparecia, a prostituta estava aparentemente certa. Até que, como ela havia dito, um louco surgiu. De início não era possível ver ele, o nevoeiro causado pelo rio embaixo da ponte impedia a visão de qualquer coisa que estivesse a mais de três metros, porém Mary o ouvia, seus passos eram incertos e fortes contra a pedra do piso. “Ótimo, mais um bêbado cambaleante querendo uma foda antes de desmaiar na esquina... Espero que pelo menos tenha dinheiro”.

O suposto bêbado avançava pela ponte, sendo possível ver seu contorno no nevoeiro, chegando cada vez mais perto. Ele usava um grande sobretudo que parecia chegar quase a seus pés além de usar uma cartola que estava torta em sua cabeça. Conforme se aproximava mais era possível ver que era uma figura pequena e magra, que andava com o rosto abaixado e escondido pela cartola e um cachecol. “Ao menos esse mirradinho não vai me dar problemas”. Porém, enquanto pensava nisso Mary, instintivamente, levava a mão para dentro de seu casaco, para o punho de couro de seu estilete, sua única defesa contra tudo, mas que ela rezava para nunca necessitar usar.

O homem, bêbado, louco, finalmente se aproxima então. Ele era realmente uma figura mirrada, porém havia algo nele, algo estranho, como uma aura ameaçadora. Ele para de frente para a prostituta, está a dois metros dela, a encara. Mary sentia algo, não era certo, havia algo errado, algo que a enchia de medo. “O que foi? Nunca viu uma mulher? ” Berrou a prostituta, não por vontade de ofender, mas por medo, para tentar afastar aquele maldito ser. Ele continua a encará-la, algo não estava certo, Mary podia sentir, seu coração batia mais rápido. Ele então caminha até ela. Algo não estava certo. “Não! ” A prostituta berrava. Havia algo errado. Aquele ser, aquele homem, bêbado ou louco. Algo não estava certo nele. Ela sentia. Era algo terrível. Escuridão. Medo. Caos. Insanidade. Havia algo errado. “NÃO! Sai daqui! Se afasta! ” Mary tira seu estilete do casaco. “SAI! Eu tenho uma arma! ” Algo não estava certo, havia algo errado. Caos. Escuridão. Vazio. Aquele homem! Aquele homem! Aquele homem não podia ser humano! “NÃO, NÃO, NÃO! ” A prostituta grita... porém ninguém a ouve... ninguém é louco de aparecer naquele frio.

Jack desperta. De novo tudo deu errado, de novo, de novo! Novamente havia sangue em suas mãos. Novamente havia uma faca manchada de sangue. Novamente havia uma mulher morta, mutilada, com a garganta cortada a sua frente. Até que ela era bonita, tinha um belo rosto, belas pernas e peitos. Tinha, pois agora estavam mutilados, cortados, destroçados. Havia uma sacola jogada no chão, manchada e úmida de sangue. Jack não precisava olhar para saber o que havia dentro, mesmo sem se lembrar direito, ele sabe que foram suas mãos que a encheram com os órgãos da mulher.

Novamente Jack havia matado, novamente ele sabia quais seriam as manchetes do dia seguinte. “Jack, o estripador ataca novamente! Jack faz sua sexta vítima! ”. Seria isso que os garotos vendendo jornais iriam gritar para as multidões de Londres, que apenas iriam ouvir e pensar “Uma puta a menos no mundo não faz falta.”. Mas não era isso que Jack queria. Ele não queria matar, não queria ter sangue nas mãos. Então Jack chorou, chorou como uma criança que não sabe porque chora. Chorou e gritou, berrou para a lua, culpou o espaço. Jack havia matado, mas não queria!

Mas ele tinha. Jack era obrigado a matar. Era culpa das vozes, eram elas quem o obrigavam a matar, a mutilar. As vozes enchiam sua cabeça, elas gritavam, berravam com Jack. Ele sabia que não podia procurar ajuda nenhuma, que medicina ou religião alguma o livraria daquelas vozes, além disso, ele não era louco, tentar se livrar delas... apenas traria um destino ainda pior. Elas diziam, falavam que ele devia matar. As vozes contavam o porquê, contavam que Jack estava trabalhando para deuses antigos, há muitos esquecidos pela humanidade. Contavam da era de caos e de prazeres inimagináveis que Jack estava ajudando a trazer. Mas Jack não queria aquilo, não queria trazer qualquer era de caos, não queria servir a deus algum, não queria matar nenhuma pobre alma.

Pobre Jack. Ele não podia desobedecer às vozes, ele tentava, sempre tentava, mas não conseguia, era simplesmente impossível. As vozes tomavam conta de seu corpo quando ele não as obedeciam. Jack tornava-se um prisioneiro dentro de si mesmo. Ele apenas assistia, com horror, suas próprias mãos cortarem gargantas de mulheres, mutilarem corpos, arrancar órgãos. Aquilo era algo insano, ele via tudo o que ele mesmo fazia, porém, sem ter o controle, não podendo impedir, aquilo era suficiente para jogar qualquer homem são no mais profundo abismo da loucura. Entretanto ainda piorava, Jack não gostava de ver aquilo e tentava levar sua mente para longe daquelas imagens que era obrigado a ver, tentava de algum modo fechar os olhos para aquilo, mesmo que não tivesse controle nenhum sobre eles. Porém, quando fazia isso, a mente de Jack mostrava a ele imagens ainda piores, imagens de caos, imagens insanas que mente humana nenhuma era capaz de entender, imagens da insanidade que existe para além da Terra, imagens que marcavam a mente de Jack como com ferro em brasa, as imagens que as vozes queriam que ele visse. E só havia um modo de evitar isso, um modo de evitar ser assombrado por tais monstruosidades que mutilavam sua mente da mesma forma que Jack mutilava aqueles corpos, o único modo era obedecendo aquelas vozes.

Então Jack as obedece. Ele segue com seus assassinatos. Segue criando o caos sobre Londres. Segue realizando horrendos e insanos rituais para os tais antigos deuses dos quais as vozes tanto falavam. Por isso Jack se levanta, pega sua sacola, da qual ainda pingava sangue, e segue em frente pela ponte, andando pelo nevoeiro que agora se dissipava.

“PH'NGLUI MGLW'NAFH CTHULHU R'LYEF WGAH'NAGL FHTAGN”. Jack para de andar, as vozes haviam falado, ele sabia o que aquilo significava, sabia o horror que aquelas palavras continham. “Você serviu bem... Nós estamos contentes... O egípcio está contente... Está na hora de você ser recompensado...”. As vozes eram agora como sussurros em sua cabeça. Ele não podia, não podia permitir que elas tomassem conta dele de novo. Algo horrível ia acontecer, ele sabia, ele sentia. O horror. O caos. O vazio. A escuridão. A insanidade. Nada mais além dessas palavras podiam descrever o que aconteceria. Não, não, ele não podia. Aquilo não podia acontecer. Não.

Um raio corta o céu escuro. Jack pula. Tudo se ilumina. Ele sente frio. O horror surge no horizonte, aquela figura que Jack conhecia pelos seus sonhos, a insanidade indescritível tomada forma, tão grande quanto montanhas. A escuridão. O caos. O vazio. Um deus.

Logo tudo acaba para Jack. Aquele era o fim. Ele estava cansado das vozes mutilando sua cabeça... Mas elas não estavam.

“Não está morto o que eternamente jaz inanimado, e em estranhas realidades até a morte pode morrer.”

(Observação: conto inspirado e ao mesmo tempo em homenagem a obra do mestre do horror, H.P Lovecraft.)

William Holmes
Enviado por William Holmes em 13/02/2017
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