[7º Desafio Contadores de Histórias - 16º Conto] -- Feitiços
Culpava-se pela distração, um segundo para olhar melhor a imitação de tapete persa e, “zas”. Agora andava a esmo. Coração explodindo na caixa do peito. Numa mescla de instinto e medo. Lágrimas escorriam queixo abaixo enquanto ela observava o beco de paredes escuras e bueiros malcheirosos. E então, arriscou.
A porta foi aberta, mas o homem ruivo do balcão não viu ninguém passar por ela. Retornou a atenção para o tomo antigo que estudava e balbuciou palavras ininteligíveis, logo a porta se fechou a alguns metros a frente dele.
A mãozinha alcançou o balcão e puxou o tecido negro. Movimentos lentos foram percebidos. Havia curiosidade e encantamento. Os olhinhos celestes brilharam e risos alegres encheram o recinto.
FEITIÇOS
Não havia consciência que suportasse tanto tempo, nem suprimentos suficientes para uma noite tão longa. Vagavam sob o negrume do céu, que parecia envolto por uma grossa manta de veludo escuro dobrada várias vezes, pois não havia fio de luz sequer — exceto pelos archotes untado com o pouco breu que ainda resistia. Já não içavam ou recolhiam as velas, seguiam ao sabor das águas plácidas, como se estivessem deslizando sobre um chão de vidro.
— Capitão, encontramos uma nova parede a leste, o senhor deseja ver?
E como se ele houvesse sido transformado em pedra, o homem de barba prateada, recurvado sobre seu próprio peso, permaneceu imóvel com os olhos fixos no nada. Pensava no irmão que havia sido levado embora por um feiticeiro, e também pensava, com remorso, na loucura que havia feito em tomar para si a esposa do irmão.
Os pensamentos o fazia mastigar a parte interna da bochecha com tanta força, que o gosto de sangue lhe enchia a boca.
“Se ainda sangro não estou morto.” Pensava em silêncio, Gaudêncio, há muito chamado apenas de Capitão.
E sem nunca atracar ou avistar nesga de terra firme, seguiam desvendando novos limites como aquele recém-descoberto.
— Capitão?
— Hã? Não, não. Agora não.
Cabisbaixo, o imediato instruía os homens a permanecerem remando, ainda que fosse somente para não “qualhar o sangue”. Gaudêncio, por outro lado, arfava desejando que o fim dos dias sem Sol viesse.
*****
Os olhos acostumados com a escuridão ficaram doloridos e cegos por algum momento. E todos na embarcação gemeram alto com o flash da luz repentina que os alcançou. No horizonte, um olhar azul não dava certeza se traziam bonança ou tormenta. Gaudêncio fitou a grande figura e desembainhou a espada, companheira de muitas conquistas e saques. Mas a voz vacilava nas ordens enquanto ele empunhava a espada em posição de desafio, de modo que só grunhidos foram ouvidos.
Trepidações violentas começaram. Vagas tremendas se formaram. Então a voz esganiçada escalou a garganta e explodiu:
— Aos seus postos, homens!
O timão foi segurado, a embarcação rabeou e os homens seguraram-se para não serem engolidos pelas ondas.
O imediato, que jamais havia visto sacolejos tão bravios como aqueles, ajoelhou-se, com uma corda atada ao tórax, e clamou aos céus.
— Oh! Meu pai! Não deixe que essa tempestade nos leve pro fundo do mar.
Mas, ao mesmo tempo que dizia isso, perguntava-se onde estavam os raios e trovões da tempestade, e que céu era aquele sem nuvens e sem chuva, onde a única água que os molhava eram aquelas vindas das próprias ondas.
O navio subiu e desceu, tombou para um lado e depois para o outro. Homens caíram naquele líquido e quando vieram à tona, foram cobertos por novas ondas, causando um alarido ensurdecedor. Gaudêncio bradou impropérios e maldições, mas no fundo agradecia pelo sabor da adrenalina que o fazia sentir-se vivo, diferente do marasmo que lhe matava aos poucos.
Com a espada ainda em punho, ele desafiou a grande figura sustentada no espaço como que por magia, e então, novamente veio à calmaria.
— Vem, vem. Maldito! Vem aqui me pegar!
O peito ainda pulsava elétrico quando seres enormes apareceram. Dois deles lhe era desconhecido, mas o terceiro tinha algo de familiar, embora o capitão sentisse a mente atrapalhada pelo tempo e pela aparência do outro.
A embarcação logo passou rente a uma parede transparente, semelhante a aquelas que haviam encontrado algumas vezes. Gaudêncio então estendeu a mão e estudou a dura estrutura. E antes que os pontos pudessem ser ligados em sua cabeça, o brilho do dia desapareceu da mesma forma que havia chegado.
****
— Por Deus, meu filho! Meu filho!
A mulher sentia partes iguais de alívio e tensão disparando dentro de si, e trazia o pequenino (de poucas palavras devido a idade), colado ao peito. As lágrimas ainda caíam dos olhinhos azuis do pequenino, pelo “brinquedo” tomado das mãos.
O antiquário aos poucos foi se distanciando do seu campo de visão.
— A mamãe compra outro brinquedo, meu amor. Olha! Olha!
Carrinhos de plástico e chocalhos coloridos tentavam fazer o garotinho esquecer-se do barquinho preso dentro de um garrafão, cujos homenzinhos lá dentro, pareciam ter vida própria.
*****
Mais uma vez o homem ruivo fechou a porta da loja e entrou naquele compartimento, há muito não visitado por ele. Retirou o tecido que cobria a garrafa e levou o objeto para uma prateleira no alto. Com olhar inexpressivo ele observou seu antigo companheiro de útero e de brinquedos, depois olhou para o calendário e ergueu as sobrancelhas ao perceber que já haviam se passado quase cem anos. Lembranças diversas vieram a ele e logo pensou na esposa. O rosto ficou mais vincado com a raiva renovada, e ele bateu a unha no vidro da garrafa, e gargalhou quando os pequeninos lá dentro vieram abaixo com as mãos nos ouvidos.
Um outro tecido escuro e empoeirado foi retirado de uma segunda garrafa próxima, onde uma mulher jazia adormecida. O homem ruivo suspirou ao ver aquela beleza conservada.
— Ah! Se tivesses me esperado... — Sibilou semelhante a uma cobra, ao passo que a mulher na garrafa despertou.
Gotas de água começaram a pingar lentamente da prateleira onde a garrafa com barquinho estava, mas o mago ruivo não percebia, pois como feitiço, sua atenção era roubada para o conteúdo da outra garrafa.
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Sejam Bem-Vindos!
Boa Sorte a todos.