EM NOME DE DEUS

Por: Gilson Raimundo
 
Informações das sentinelas davam como certa a invasão sarracena. Jerusalém estava bem guarnecida, suas muralhas quase intransponíveis era sinal do poderio europeu, o recém-nomeado Rei Guy de Lusignan (1150-1194) altivo e orgulhoso não permitiria que os infiéis novamente maculassem o solo sagrado. Preparou seu exército e marchou de encontro aos cães muçulmanos.

A guerra apenas glorifica o diabo, o maior erro dos cruzados foi acreditar que evocando o Santo Nome de Deus estariam imunes ao fogo inimigo, como se estes também não rendessem preces ao Deus de Maomé.

Eufórico, o mensageiro chegou açoitando sua montaria ferida por flechas inimigas, foi o ultimo galope do pobre animal. As notícias da frente de batalha eram as piores possíveis. Seu soberano havia tombado no campo santo. As tropas de Saladino (1137-1193), sultão do Egito estavam em maior número e acostumadas às dificuldades do terreno, pouco tempo levou para que os grilhões fossem lançados aos homens do Rei, as cimitarras pesavam sobre a jugular dos invasores, mas não era a hora de morrer, Guy não pereceria como um qualquer. Olhando-o nos olhos, o sultão afirmou que um rei jamais mataria um igual, sendo assim seguiria cativo até o fim da contenda.

Com a maior parte do exército dizimada naquela trágica empreitada, estava a cidade agora dependendo apenas das fortes muralhas, somente elas davam um pouco de esperanças a seus habitantes que desconhecendo a compaixão do inimigo temiam retaliação, pois quando da queda de Jerusalém para os francos um massacre tomou conta das ruas, mulheres, idosos e crianças foram degolados em nome da fé europeia.

Enquanto os homens se destroem por mesquinharias terrenas, uma guerra silenciosa esta sendo travada, querendo ou não todos são soldados nesta batalha, podem até pensar que souberam escolher suas trincheiras, porém são apenas peões manipulados por mãos invisíveis, nunca serão vencedores, mesmo aqueles que permanecerem de pé no dia seguinte estarão de joelhos implorando perdão.

Em meio as fileiras inimigas, três lúgubres figuras marchavam, escondiam-se na indigência mais tinham seu próprios intentos. Saladino reivindicava a posse da cidade santa e a completa retirada dos invasores, aqueles outros desejavam apenas um raríssimo e desconhecido tesouro, um espólio que definitivamente não poderia ser dividido pois pertencia apenas a um senhor, deveria ser resgatado.

Sem seu líder, os nobres da cidade deram início aos preparativos para resistência. Provisões foram estocadas, armas foram distribuídas, jovens escudeiros de um instante a outro se tornaram bravos cavaleiros. Heráclio (????), Arcebispo de Cesárea organizou as defesas, até mesmo os refugiados maltrapilhos foram recrutados para as forças milicianas.

Ao se posicionar em frente dos enormes portões, Saladino enviou um ultimato.

A cidade se renderia com as pessoas pagando tributo garantindo assim sua retirada em segurança.

 Poucos teriam condições de pagar alguma coisa. A luta continuou.

 Numa manobra para iludir o adversário, simples cidadãos travestidos de soldados foram distribuídos ao longo muralha. No primeiro ataque, ouviu-se um sibilar típico das serpentes, por detrás da infantaria uma nuvem negra de gafanhotos pareceu alçar voo, em segundos metade do contingente improvisado caiu vitima das flechas mulçumanas. Por semanas, as catapultas incansáveis arremessavam projeteis incandescentes por sobre os muros, durante a noite as pedras untadas com betume voavam fazendo um belo espetáculo antes de caírem espalhando sua devastação.

Seria tão simples se aquelas almas impuras pudessem apenas adentrar como qualquer outro a cidade, mas estavam presos a condições alheias ao conhecimento humano, caminhariam pelo solo sagrado apenas se este caísse em batalha. Não poderiam entrar pelos portões sem merecer sua passagem. Seus corpos de natureza sombria já sofriam com a luz do dia, o sol roubava suas energias quase que eliminando sua existência, sua pele ressecada parecia grudar nos corpos esqueléticos, somente a noite poderiam se regenerar mediante um profano festim, onde bastava escolher a vitima entre os feridos, arrasta-la para um lugar ermo, debruçar sobre o corpo combalido que nem forças tinham para resistir. Então seus longos dedos, como garras de aves de rapina ajudavam os dentes famintos dilacerando as carnes em busca dos órgãos internos um tanto mais apetitosos.

No dia seguinte se algum dos guardas desse pela falta do prisioneiro uma busca era realizada, quase sempre encontravam o cadáver destroçado. O sultão nunca foi incomodado com tais detalhes, apenas era informado da perda de um dos prisioneiros para os braços sedentos da morte, condoído, lastimava a perda de mais um soldado honrado e continuava o cerco.

Apesar das constantes investidas, o murro permanecia de pé. Lá dentro, a cidade ficava sem provisões, o reforço nunca chegaria, estavam a meses de distância dos nobres europeus, vez por outra, sem como realizar os atos fúnebres, corpos apodrecidos eram dispensados muralhas abaixo. Ato abominado pelos servos de Alá e festejado pelos impuros.
À medida que o tempo corria, as defesas enfraqueciam-se, até mulheres faziam guarda nas muralhas, enquanto isso, emissários sarracenos exigiam a rendição. Piedoso, também os miseráveis poderiam desertar, desde que jamais voltassem a empunhar armas em qualquer outro lugar.

Quando o filho de Deus tentando espiar os pecados do mundo, naquele mesmo pedaço de chão se ofereceu em sacrifício nas mãos dos mortais, olhos, gananciosos espreitavam por oportunidades. Sua morte não foi em vão, as forças das trevas tiveram uma imensa derrota, mesmo tendo tirado a vida terrena do filho do Senhor, o mal por algum tempo fora banido.

Pessoas comuns não poderiam simplesmente crucificar um homem com bênçãos divinas, ainda mais sendo ele o próprio filho de Deus enviado como testemunho da glória dos céus.
Desde que influenciado pela serpente o homem foi expulso do paraíso, uma guerra estava sendo travada, o bem e o mal criavam ferramentas capazes de garantir alguma vantagem. Além dos cravos de metal que perfuraram as carnes sagradas algo ainda mais poderoso teve que ser usado.

Do reino dos mortos um martelo foi enviado. Era uma peça de ferro temperada pelas chamas das entranhas do inferno, seu cabo também de metal contava dois palmos, seu corpo cilíndrico encimado por uma cunha pesava cerca de três quilos, assemelhava-se com um daqueles usados por ferreiros no trabalho com a forja, não possuía destaques ou gravações. Somente com ele poderiam ser dados os golpes que fixaram o Santo Homem na madeira.

As criaturas da noite não desejavam ouro ou jóias, queriam apenas esta tosca peça que para o resto não teria valor algum. Bastava os murros caírem que fácil alcançariam o objeto. Este instrumento permitiria que qualquer metal malhado por ele se constituísse numa excelente ferramenta que não só poderia ferir os mortais como também destruiria aqueles de natureza sobrenatural indistintamente de serem maus ou bons.

Acuados e famintos, a fé estremecia, nada indicava uma possível reviravolta nos fatos, mães testemunhavam a morte dos filhos, famílias eram destruídas. Perante a iminente queda, Heráclio preparou-se para fuga. Conhecedor dos mistérios sagrados recolheu tudo que tinha valor nas igrejas da cidade, nada foi esquecido. De posse de salvo conduto, a população sofrida partiu para longe do solo santo.
Vitoriosos, com os portões escancarados os servos do mal por dias buscaram seu troféu. Logrados, despejaram toda sua ira contra os templos de Jerusalém, por sua nefasta influência Saladino outrora equilibrado mandou que destruíssem todo e qualquer altar cristão existente na Terra Santa.


O cerco teve fim, os homens tiveram sua vitória, mas a verdadeira guerra continua, armas ainda são forjadas, soldados ainda são manipulados, agora nos cabe escolher nossas trincheiras.

 
 
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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 18/04/2015
Reeditado em 18/05/2015
Código do texto: T5211644
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