Vozes Perdidas na Neve

 (Walter Crick)
 
       Seus lábios secos, gelados de frio, racharam-se a pouco, deixando escorrer um sangue ralo por falta de sais minerais. A pele branca clamava por sol, mas as semanas escondido não lhe reservavam tempo para um passeio matinal ou para um piquenique ao ar livre. As lágrimas já cansadas de escorrer pelo rosto torturado escondiam-se no fundo de sua alma, com pavor do que poderia acontecer em seguida.

       As costelas fracas despontavam em um corpo raquítico e quase nu, sem roupas, sem pelos e sem dignidade. O cabelo maravilhoso, negro como chocolate amargo- que por sinal ele adorava- já não mais balançava ao ritmo do vento. Acabara-se a vida, os cabelos e o chocolate. Somente restara-lhe uma ponta de esperança e um pedaço de pão velho, que ele guardava. Perdia-se no meio do caminho, a esperança lutava para não o fazer.

      Passou por um amontoado de lixo, casas, restos de comida, roupas, escombros e pessoas. Viu um corpo de olhar vazio que fora torturado até a morte. Já vira aquilo tantas vezes que provavelmente nunca se esqueceria do jorrar do sangue nas paredes e no meio das ruas. A barba por fazer era tudo que lhe sobrara no rosto belo que um dia fora o de um jovem esportista, exímio nadador.

       Apavorado, por vezes era obrigado a ver os primos, sobrinhos e tios serem levados por comboios armados. O pai sumiu há pouco tempo. A mãe foi comprar leite e ovos, porém nunca pode terminar a receita que fazia. Até cinco dias atrás, a namorada Felicia Blawat, grávida de sete meses, estava junto deles.

      [Rasgaram-na a barriga e sumiram com o bebê, deixando-a agonizando no chão].

      Arrastou-se por entre um pequeno monte de feno, que apodrecia e mofava no frio invernal que fazia lá fora. A neve branca insistia em cair, pesada, perfurando a pele fina do rapaz e abrindo feridas no corpo desgastado. Todavia, a alvidez fora há tempos suplantada pela pungente cor do sangue.

      Subiu uma ladeira dolorosa, que dava para o norte, a única saída que conhecia. Seu corpo tremia de frio, prestes a congelar. Escorregou na lama gelada e caiu pesadamente ao chão, contorcendo-se de dor.

      Lembrou-se dos amigos Mozes Blum e Fishel Freihoff; das noites que saíam às ruas tarde da noite para beber e aventurar-se com os hormônios à flor da pele. Chegavam a deitar-se os três de uma só vez com apenas uma mulher, em fantasias praticamente perdidas em meio aquele cenário desolador.

      [Quanto aos amigos, os vira mortos ao chão com tiros perfurando-lhes o rosto bonito, desfigurando-o.]

      Conseguiu enterrar Mozes de forma digna, ainda com os familiares ao lado, mas Fishel tivera de ser deixado ao relento, rapidamente consumido pelas pragas e larvas, algo completamente desumano. Correu os olhos pela rua movimentada aquele dia. Fora a última vez que vira todas aquelas pessoas ali. O silêncio se proclamara ditador da cidade nas últimas semanas, torturando e assassinando quem bem desejasse.

      O pior era ver o sorriso na face dos assassinos, soldadinhos e marionetes da verdadeira face do mal.

      A cidade morta foi se afastando lentamente, enquanto a neve ia se aproximando cada vez mais. Tremia de frio sim, porém guardava para si o fato de sentir medo. Do outro lado da elevação, tudo o que se via eram campos brancos, cobertos pelo gelo, destacando-se apenas uma luz no horizonte perdido. O escuro caminho era traiçoeiro, porém não mais do que a vida lhe revelara até o momento.

      Como um inseto, seguiu o ponto amarelo, iluminado ao fundo, que se aproximava a passos lentos, reflexo da carência por água e comida do homem em fuga. Teve de se abaixar quando uma caminhonete militar passou, cheia de soldadinhos armados, provavelmente bêbados, certos de que estavam no controle.

      E o foco de luz continuava a seduzi-lo. Afinal, o pão congelou, e ele não queria que seu corpo seguisse o mesmo caminho. Aliás, o peitoral musculoso e bem trabalhado murchara, tornando-se uma linha reta, com as costelas lutando para não perfurarem a carne. O abdômen definido, com gomos metâmeros escondidos sobre uma penugem capilar - que antes deixava as garotas histéricas - largara-se daquela dimensão, transformando-se em uma barriga negativa e morta de fome. Inclusive a fonte da virilidade, de onde ele e sua namorada não conseguiram ter seu último momento de prazer, secou.

      Acabou chegando o mais próximo da luz que conseguiu, cambaleando com sofrimento, mas ainda tentando manter-se de pé. Pôde vislumbrar casebres simples de madeira, com um grande portão à frente, e cercas que se estendiam até onde a visão não conseguia alcançar, repletas de farpas minúsculas a olho nu, porém cortantes como metal polido. Chaminés imensas mascaravam o local que mais parecia uma fábrica de panelas ou de roupas, visto que haviam muitas pessoas uniformizadas em trajes simples.

      Correu como nunca havia feito, e percorreu os dois quilômetros que o separavam da construção imponente em poucos minutos, em um último rompante de energia. A cabeça pelada pedia por uma touca; o corpo nu, por agasalho e comida; os pés descalços, por lã... E o coração desamparado, por carinho.

      Queria esquecer o que se passara na cidade, mudar a página no livro de sua vida, e estava certo de que seria feliz trabalhando para aquelas pessoas.
O portão metálico aproximou-se, crescendo e deixando transparecer uma frase que o motivou, sabendo que ali era o lugar certo. As cancelas de madeira se abrigaram graciosamente, deixando-o com a sensação de imponência. Passou por rostos brancos, sorridentes, e encarou um senhor alto e de bigode aparado ao fundo de um corredor iluminado. Sua expressão era séria, transparecendo confiança. Os olhos do jovem nu brilharam quando ele estendeu a mão, dois metros adiante. O ex-nadador estava convencido de que finalmente mudaria de vida. Duas mulheres bonitas, também de expressão fechada, vieram e colocaram-no uma faixa no braço, a qual não lhe disseram o porquê. Elas também usavam uma, porém vermelha, com um símbolo que lhe parecia familiar.

      O jovem parou à frente do homem do bigode aparado, estendendo-lhe as mãos cordialmente. O bigodudo abriu um dos braços e tascou-lhe subitamente um tapa tão forte que fê-lo cuspir sangue aos borbotões.

      -Bem vindo a Auschwitz-Brikenau, maldito judeu. – Sorriu ao vê-lo cair de dor. – Sua alegria termina aqui.

      Realmente, o sorriso do rapaz nunca mais pôde ser contemplado, e se perdeu no meio das cinzas e do gás tóxico, assim como todas as vozes massacradas naquele terrível período da história da humanidade.

 
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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 10/11/2014
Reeditado em 23/11/2014
Código do texto: T5030608
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