O que Deixamos para Trás

A suavidade do tecido resvalando nos ramos de trigo era quase poética. Ela havia descido a colina para colher algumas ramas, a fim de limpar as sementes e trabalha-las. Seus filhos a esperavam na pequena varanda do casebre, os olhos bem abertos, atentos aos movimentos daquela mulher de rosto suave, mas de olhar tão sério. O homem jazia na cama encostada na parede do único cômodo da casa. Ninguém sabia o que ele tinha e porque não melhorava, mas uma coisa era certa: morreria. Os dois pequenos saíram-lhe ao encontro, para agarrar-lhe a saia. Nenhum deles gostava de ficar, por tempo que fosse, sozinho com o homem.

Ele já fora cheio de vida, palavras e andanças, vez ou outra uma mão sobre a cabeça, mas já tinha tempo que só fazia gemer. Quando o vizinho o trouxera para a casa, dissera que os bois do patrão haviam-lhe pisoteado. A mulher, com seus dois filhos pequenos, chorara, mas agarrada ao terço dissera-lhes que tudo ficaria bem. Ela não forçara nenhum sorriso, apenas olhara para os pequenos com seu olhar sério. Se fossem de mais idade, entenderiam que ela dissera aquelas palavras mais para si mesma que para as duas crianças.

A mulher colocou de lado as ramas e deu de comer à vaca que o patrão lhe dera. “É pra alimentar seus filhos” dissera o capataz... o patrão nunca apareceu na casa.

O homem havia plantado trigo antes do acidente. A mulher havia insistido no milho, mas ele não ouvira. Agora ela só tinha o trigo e uma vaca emagrecida.

Ela passou os olhos pelo terreno em volta da casa. Suas crianças brincando por perto, o varal cheio de roupas que não eram suas, a pequena plantação de trigo colina abaixo... o sol que já ia descendo...era tão bonito, tudo dourado até onde se via, o céu, a plantação, o riachinho até a pequena mata de preservação. Nada daquilo parecia tomar conhecimento do sofrimento da mulher.

O lado de dentro da casa já ia ficando escuro, a mulher, percebendo, se apressou a acender a lamparina sobre a mesa pequena de madeira. Eu estava acocorada na viga do teto e observava impassível a cena toda. O homem não tirava os olhos de mim.

A luz iluminou um pouco o ambiente e a mulher se pôs a mexer com algo para comer. Gritou com as crianças para que estas se limpassem para a janta e continuou na sua atividade frenética, indiferente à minha presença.

O homem argumentara, barganhara, teimara... agora estava silencioso... eu lhe dava tempo. Nem todos aceitam rápido. A força de vontade dele era mesmo notável. Ele queria ficar. Preocupava-se com a mulher e as crianças, queria ter certeza de que ficariam bem. Eu não tinha certeza para dar.

Naquele dia, ele estava diferente. Parecia cansado de uma forma existencial. Fechado numa tristeza serena. A mulher serviu um prato de sopa, ergueu um pouco o homem, apoiando-o nos cobertores e, como já fazia há algum tempo, tratou de fazer um pouco do caldo descer pela garganta dele.

Olhando-o eu disse:

- Quer saber o que ela pensa neste momento?

- Não preciso. – disse ele – Eu entendo o cansaço dela. Em outros momentos, mesmo eu torci para que ela me sufocasse.

Era claro que a mulher se endurecera, durante todo esse tempo. Antes sorridente e carinhosa, agora solene e silenciosa. O homem se preocupava com isso também. E eu sabia que esta preocupação só aumentava, por isso, dava-lhe tempo.

Ela e as crianças se alimentaram, a mãe tomou a costumeira lição de leitura e a casa adormeceu em silêncio e escuridão. Naquela noite choveu um pouco e o homem saiu para ver a terra molhada.

- Sabe que eu não consigo nem mais sentir o cheiro da terra? Nem me lembro da textura dos cabelos dos meus filhos, ou do sorriso dela... não sabia que era tão fácil esquecer.

Eu apenas o observei.

- Queria deixar ela bem, queria dar estudo pros meus filhos... tinha tanto pra fazer, tantos planos... mas parece que nada faz sentido agora. Eu não sou nada. Se eu for com você, acaba tudo?

- Acaba.

- Ela fica bem sem mim?

- Não sei dizer.

- O que vem depois?

- Algo novo.

Ele fechou os olhos e puxou um fôlego profundo.

- O cheiro da chuva... – murmurou de olhos fechados e um sorriso leve.

Então ele veio para o meu abraço. Mais um espírito leve e fácil de ser carregado.

Alguns precisam de mais tempo.

Alanis de Louvain
Enviado por Alanis de Louvain em 17/10/2017
Reeditado em 17/10/2017
Código do texto: T6145112
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