Fogo amigo

Somente quando a viúva se atirou em meus braços é que senti o desconforto.

Até aquele momento, a morte prematura de Floriano se resumia a uma dessas fatalidades que a gente acompanha diariamente nos noticiários de televisão, mas nunca imagina que um dia poderá nos abater.

Sara permaneceu longos minutos abraçada a mim. Soluçava baixinho e sussurrava frases lacrimosas. O corpo delicado se moldava ao meu que, sem conseguir confrontá-la virava a cabeça para os lados, torcendo para que alguém me livrasse daquela situação. Atônito, me surpreendi perguntando a mim mesmo se tinha sido eu. Tinha?

Quando finalmente consegui me desvencilhar da mulher de Floriano, procurei um lugar para sentar. Preferencialmente, longe de conhecidos que me atropelassem com lamúrias ou especulações. Acomodado, escondi no bolso, as mãos que suavam exageradamente . O incômodo aumentava junto com a sensação de estar sendo observado. Será que desconfiavam de mim?

Eu tinha prestado depoimento para a policia ainda no local do acidente. Revelara os detalhes, sem esquecer nenhum pormenor. Repetira a mesma história para familiares; a imprensa; pessoas próximas . Como se explicava aquele embaraço?

Eu e Floriano éramos amigos de longa data. Companheiros de aventuras desde o tempo de solteiros. Por sorte ou azar, eu me casara primeiro. Meu parceiro, coitado, não desfrutara sequer as bodas de açúcar. Uma lástima deixar tão linda esposa desamparada. Formavam um casal harmonioso, de dar inveja aos infelizes. Sara era bonita, uma mulher que ele podia apresentar com orgulho em qualquer evento. Sabia se portar, vestia-se com elegância. Exibia uma sensualidade respeitosa.

Do outro lado do salão destinado ao velório, ela acenava para mim. Balançava as mãos pequenas, se comunicava com os olhos tristes, parecendo não entender a causa de minha frieza. Enquanto me abraçava não percebi em seus modos sinais de suspeita ou recriminação. Era só uma mulher que sofria a estúpida perda do esposo. Por que não desviava os olhos de mim?

A mente que se tornava mais e mais confusa, lembrou o dia em que a surpreendi em trajes que revelavam o que não deveriam. Não tinha sido de propósito, mas acontecera. Culpa da estreita amizade com Floriano. Frequentávamos a casa um do outro sem formalidades. Uma tarde, antes que minha chegada fosse anunciada ,adentrei o domicílio do casal e invadi a privacidade que era dela e do marido.

Sara zombou de meus incontáveis pedidos de desculpas, demonstrou ter esquecido rapidamente o episódio. Nunca soube se ela relatou o incidente ao falecido. Sei que a partir daquela ocorrência minha amizade com o Floriano adquiriu certo distanciamento. A pescaria seria a oportunidade de nos reaproximarmos, pensei quando ele me fez a proposta.

Seríamos só nos dois pescando no “Monções”. Eu conhecia os perigos daquelas águas, entretanto me calei diante do entusiasmo de meu parceiro. “Dizem que lá estão fisgando os grandes”. Por que não o impedi? Seria possível que eu tivesse colocado minhas fraquezas acima de nossa antiga afinidade?

Um novo depoimento à polícia estava marcado.Eu já não tinha certezas. Começava duvidar de minha lealdade ao companheiro de tantos anos. Fantasiava relação entre a tragédia e a tarde em que eu surpreendera a viúva em sua intimidade.

Precisava voltar para casa e pensar. Na tranquilidade de meu quarto, os pensamentos se ordenariam. Eu constataria que não tinha culpa naquela morte. O barco tinha virado quando estávamos no meio do rio. Floriano caiu na água turva e sem conseguir agarrar sua mão o vi ser arrastado pela correnteza até afundar. Tinha sido exatamente assim.

Após o sepultamento segui a passos rápidos para o portão do cemitério. Quando percebi, Sara tentava me alcançar. Esperei e ela me envolveu com os braços macios ,uma última vez . Chorando se desculpou pelo infortúnio que me comprometia. Polícia. Imprensa. Opinião pública.

Acariciou meu rosto sem preocupar-se com o que os outros, ou minha mulher se estivesse ali, fossem pensar. Antes de se despedir, admitiu compreender as razões que me levaram a esquivar-me de qualquer aproximação ao caixão onde Floriano repousava para sempre.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 13/08/2017
Reeditado em 08/01/2018
Código do texto: T6082962
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