A praça da China

Já posicionado diante da fila de retroescavadeiras, Luciano olhou ao redor procurando os outros. Deparou-se com os girassóis que, como sentinelas, cobriam altivos quase toda a extensão do campo. A imagem se confundia com as lembranças dos dias utópicos que vivera ali. Haviam cavado com as mãos o solo onde cada flor fora semeada. Tinham impregnado na pele o cheiro da terra fértil. Engendraram sonhos individuais ou coletivos guiados pelas pétalas douradas que pareciam reverenciar o sol. Ao ouvir o ruído dos motores, tentou reter em seu espírito solitário o quadro amarelo, pintado pela natureza. Só lamentou se despedir sem saber, se os girassóis realmente se curvavam ou exibiam sua imponência para a maior estrela celeste.

Numa noite de tempestade Luciano chegou ao acampamento. Completamente molhado, lutava para se manter em pé sobre a lama que o desequilibrava. Estava sozinho, como tinha sido desde que se lembrava. Sem pai, mãe, amigos ou namorada carregava na mochila encharcada alguns poucos pertences. Quando pediu abrigo para uma noite, desejou que o autorizassem dormir ao menos, no recinto dos animais. Estava cansado e as muitas horas sob a chuva fria pareciam ter provocado um resfriado.

Na manhã seguinte o temporal se desvanecera, mas como havia previsto, apanhara uma forte gripe. Acordou ardendo em febre. As vias aéreas constipadas dificultavam a respiração. O peito chiava como nos tempos em que era menino e sofria de bronquite. Assim que seus anfitriões, um casal em idade avançada, constataram sua debilidade, proibiram que partisse. Cuidaram dele, como nunca fora acarinhado em toda a vida. Nada pediram em troca, simplesmente agradeceram o privilégio de ter com quem compartilhar as vivências no acampamento e falar dos caminhos que os conduzira até ali . Perplexo, Luciano ouviu as histórias mescladas de episódios tristes e felizes, se perguntou como um mundo corrompido e mesquinho fora capaz de gerar pessoas tão boas.

Quando enfim recuperou a saúde, o introvertido viajante viu que não poderia partir. Percebeu-se cativo da afeição de Helena e José, seus benévolos acolhedores. Por outro lado, a vida entre os acampados acenava para uma realidade desconhecida para ele. Eram homens e mulheres lutando por um ideal de sociedade onde o bem comum estava acima dos interesses particulares. Um mundo onde o dinheiro não subvertia as pessoas e seus valores.

Ficou, e no tempo em que esteve ao lado de tantos sonhadores deixou para trás os dias de frivolidades que experimentara até então. Esqueceu a futilidade da mãe e a ambição desmedida do pai. Envergonhou-se de sua própria existência, movida a prazeres levianos e egoístas. Julgou-se liberto das relações norteadas por deleites imediatos. Acreditou ter descoberto a vida em toda sua amplitude.

Quando os primeiros girassóis começaram a florescer, se convertendo em dinheiro e melhoria, os desentendimentos tiveram início entre os acampados. Luciano encontrou-se novamente atolado na miséria humana. Helena e José tinham morrido e não assistiram grande leva de famílias abandonarem o projeto de vida arquitetado por muitos.

Um pequeno número de resistentes se mostrou disposto a defender a terra que já despertava o interesse de grupos dominantes e instigava a cobiça dos poderosos. Por anos, Luciano liderou o grupo, cada vez mais reduzido, daqueles que não pareciam ter sucumbido ao medo e a ganância.

No dia em que as retroescavadeiras chegaram, ele tentou manter viva a convicção de que tudo o que vivera não tinha sido em vão. Caminhou sozinho até as máquinas e parou. Os campos floridos lembravam uma praça.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 13/08/2017
Reeditado em 14/08/2017
Código do texto: T6082961
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