Barba Suja

“O pirata Barba Grossa descansava em sua cabina. Haviam muitas especiarias, das diversas partes da costa do norte africano. Algumas adquiridas, outras tomadas à força, como era o costume de sua tripulação. Um forte cheiro de almíscar se misturava ao doce odor das pimentas argelinas, ao olor espesso dos perfumes mouros, que continham em sua essência o aroma dos castelos da Sevilha e de Navarra. Na janela, as sedas vermelhas desciam do teto até o chão, formando grandes ondas rubras, se espalhando pelo assoalho de quarto feito o sangue grosso que se derrama à uma punhalada no centro do coração. Ao lado de fora, as ondas batiam na parede fazendo um estrondo surdo, tendo em resposta o ranger agudo e irritante da madeira encharcada expandida pela ação da água abundante. Em cima das almofadas macias, vindas da Índia e bordadas à mão pelas melhores artesãs da Caxemira, estavam os pratos que continham os restos de sua última refeição.

O pirata descalçou as botas e jogou-as para um canto do quarto, onde se encontrava um grande baú, feito de madeira negra e reforçado à placas de aço temperado. Um rato correu para um monte de roupas velhas, assustado pelo baque das botas no assoalho. Barba Grossa olhou para seus pés. Estavam inchados, azulados, arroxeados e avermelhados. As unhas, com exceção de uma, estavam todas negras e apodrecidas. Suas cutículas estavam saltadas, como flores do campo, amarelas, que se abrem de uma hora para outra, deixando transparecer todo conteúdo de seu interior. No peito do pé, os pêlos começavam a embranquecer. Massageou os pés com as mãos. Sentiu-se melhor. Lembrou-se de seu pai, que o ensinara a nadar e a pescar. Seu pai era um homem do mar. Um lobo das ondas salgadas. Sabia tudo sobre o oceano, embora nunca tivesse se entregado à pirataria. Levou uma facada de um jovem corsário numa cantina no Egito. O corpo chegou em casa quatro dias depois, envolto em sal, desfigurado pela expressão da dor e à ação do tempo e dos vermes. Barba Grossa tinha doze anos. Só o que disseram foi que seu pai tinha entrado numa rixa com Mahud Al’ Ahemm, um rapaz do submundo egípcio conhecido como Barba Suja. Daquele dia em diante o garoto se converteu à delinqüência. Fazia roubos e entrava em brigas. Bebia. Matou seu primeiro homem aos treze anos. Estuprou muitas mulheres, degolava-as e estripava-as. Fugindo das autoridades britânicas lançou-se ao mar. Nunca mais viu a mãe ou o irmão. Conheceu os bucaneiros caribenhos. Deixou a barba crescer, pois para ele, isso era sinal de masculinidade e força, embora não soubesse exatamente por que – o pai não tinha e era muito homem. Fez dinheiro, amantes e inimigos nos jogos, nos roubos e no sangue escravo.

Desde a morte de seu pai, se passaram quarenta e dois anos. De seu interior nunca saiu a vontade de encontrar Mahud Al’ Ahemm e vingar a morte do pai. Vingar sua vida desgraçada, humilhada e apodrecida. Beber seu sangue numa taça de prata e comer seu coração num prato de ouro. Esses eram seus desejos, e agora, doente e no fim da vida, buscava o assassino feito o lince atrás da lebre. Subitamente a porta da cabina se abre. Lá fora, a escuridão domina o barco. A chuva começa a entrar no aposento, acompanhada de seu marido leal e perigoso: o vento gelado que sopra com força nas noites frias da imensidão do Atlântico Norte. Um relâmpago ilumina o convés, ofuscando a vista do capitão e deixando o mundo branco e claro por menos de um segundo. Com a vista embaçada, ele avista uma silhueta que permanece imóvel na porta da cabina, trazendo atrás de si a tempestade monstruosa do vasto oceano.

A visão começa a lhe definir melhor os contornos da figura, que porta um grande chapéu, roupas sedosas e uma capa esvoaçante no vento molhado. A figura se aproxima. Os passos de suas botas fazem um estalo oco no assoalho de madeira. A lamparina ilumina o lado direito de seu corpo, deixando-o amarelado como a luz dos vidros já castanhos pelo calor de muitas velas que ali arderam. O barulho de metal vem de sua cintura, que porta um fino sabre de artesanato francês e uma pistola ligada a uma corrente de prata. Um cheiro de rum, misturado à suor e perfumes vagabundos, invade as narinas do pirata, que ainda estava sentado no chão, massageando os pés. Ao olhar para cima, vê um homem de cabelos negros, longos, encaracolados. Um fino bigode se apresenta em sua face magra, acompanhando um cavanhaque pontudo que desce até a metade do pescoço. Barba Grossa brada contra a intromissão do estranho, chama sua tripulação. Ninguém responde. Ao tentar se levantar, um forte estrondo o faz ensurdecer... sente um coice contra suas costelas, acompanhado do característico cheiro de pólvora. A bala penetrara na região lombar e Barba Grossa tem a sensação que suas costas pegam fogo. A mão, que colocara no local, vem embebida em sangue quente e escuro.

Com a dor lacerando em seu corpo gordo, ele rasteja em busca de sua espada. Em vão, pois o visitante chuta-lhe a cabeça, fazendo com que ele caia de costas para o chão, sobre as almofadas indianas, que agora têm seus preciosos desenhos tingidos de vermelho, que se mistura à paisagem. O intruso saca seu sabre e encosta na garganta do agonizante. Milhares de sensações invadem a mente de Barba Grossa, mas a todas elas ele se mostra impotente. Não há mais forças. Já não existem mais meios de se fazer nada. Um fim medíocre se aproxima, sem que lhe seja dada a chance de lutar. O visitante conta-lhe que seu nome é Mahud Al’ Ahemm, e que também é conhecido como Barba Suja. Diz que procurou pelo filho de Charles Goodwind durante toda sua vida, pois ele desejava vingança contra o filho do homem que estuprara sua mãe. Disse que Charles currou uma egípcia e que desse ato vil nascera ele, Mahud Al’ Ahemm. Jurou que iria destruir toda a prole de seu miserável pai. O mais difícil foi achar Barba Grossa, pois em todos os lugares onde ia, ele já não estava mais. A busca que durou mais de quarenta anos estava, enfim, acabada, para ambos os lados. Despedindo-se de seu meio-irmão, cravou-lhe a espada no pescoço. E antes que a vida abandonasse o corpo de Barba Grossa, saiu pela mesma porta que entrou, mergulhando na treva das brumas do oceano”.