Advogado!
 
     No dia da formatura de Arnaldinho, a mãe, teve um presságio, não falou nada há ninguém, sentiu um trem ruim na barriga e um gosto estranho na boca.
     A mãe de Arnaldinho, dona Clementina, não conseguia andar, uma bambeza nas pernas! As pernas estavam moles, bobas, não firmava o peso do corpo. Tentou andar, mas quase desabou no chão como uma jaca madura. Ai meus Deus! Suspirava dona Clementina. Seguiu para a formatura do filho numa cadeira de rodas.
     O salão estava lotado, pais, filhos, irmãos, tias, sobrinhos, primos, amigos e  por aí vai... Todos vestidos de preto, os formandos em beca de cetim, homens e mulheres com a mesma vestimenta. Após o juramento, todos os formandos se tornariam profissionais do direito, defensores da lei e dos direitos dos seus clientes.
     Afinal de contas, todo cidadão tem direito a um advogado durante um processo judicial, nem que seja um defensor público, um “porta de cadeia” ou mais conhecidos por “chave-de-cadeia”.
     Arnaldinho montou seu escritório, começou defendendo alguns pequenos delinquentes da periferia, pequenos furtos, aceitava trabalhar para os moleques para praticar e conhecer o mundo do judiciário.
     A família olhava-o com desconfiança, mas acreditava que seria apenas no começo da carreira. O problema é que de pequenos furtos, começou a defender os chamados “aviãozinhos” da favela.
     Começou a correr um muxoxo a boca miúda,  na família e entre os colegas de profissão de Arnaldinho, que ele se tornava cada dia mais amigo de delegados, policiais civis e traficantes. Era conhecido por Doutor Arnaldo.  Se alguém lhe chamasse pelo diminutivo levava um pito, um corretivo, uma reprimenda das feias.
     Um dos clientes do doutor Arnaldo era totalmente descompensado, um aluado. Conhecido por “Quinta-lua”, pois tinha uma fase a mais, obscura, tenebrosa. Esta só se revelava na escuridão. Quinta-lua tinha obsessão por mulheres bem mais velhas que tivessem a aparência para ser sua mãe, ou sua avó.
     Numa sexta feira, dona Clementina saiu para fazer compras numa mercearia no bairro onde comprou apenas o necessário. Levou  sua sacola de nylon de fundo azul com estampas de passarinhos e voltou para casa.
     A noite não caminhava apressada, mas ia a passos largos. Apressou- se para alcançar a novela. De repente sentiu um metal frio na garganta, uma mão nos lábios e uma voz firme ao pé do ouvido:
     -- Entra aqui ou lhe arranco a cabeça com meu punhal.
Clementina adentrou um matagal, nos seus sessenta e cinco anos de idade e não resistiu, desmaiou. Acordou sozinha, com as roupas jogadas ao seu redor: a mãe do doutor Arnaldo foi violentada.
     Levantou devagar, se vestiu com dificuldade. Recusava-se a  aceitar tudo que aconteceu. Encontrou alguns de seus pertences que estavam na sacola de nylon, saiu do matagal sem deitar uma lágrima, como se estivesse segurando toneladas na cabeça, manteve-a erguida e seguiu para casa.
     A cada dia que se passava, ia ficando mais e mais inconformada. Passou a se deitar mais cedo, perdeu a vontade de cuidar da casa, cozinhar, conversar com as amigas. Uma leve depressão lhe apossou, mais alguns dias e a depressão lhe venceu: ficou de cama, estava totalmente alquebrada.
     Senhor Adhemar, morador do bairro tem uma farmácia na esquina das ruas das Avencas com rua das Acácias. Na sua farmácia há um sistema de monitoramento de vídeo.
Num domingo à tarde tomando sua cerveja, resolveu olhar os vídeos do sistema de segurança da farmácia. Não acreditou! Repassou várias vezes. A câmara havia filmado dona Clementina ser sequestrada e conduzida ao terreno próximo à farmácia. O vídeo identificava perfeitamente as pessoas e algo mais.
     Adhemar procurou Clementina, mesmo sendo informado pelo filho mais velho, Geraldo, que a mãe estava de cama. Insistiu, precisava falar a sós com ela, era muito importante. Clementina concordou e o filho os deixou no quarto.
     -- Senhora Clementina, com todo respeito, lhe entrego um vídeo que tenho. Com ele a senhora pode tomar providências com o que aconteceu com a senhora.
     -- Prometo à senhora, qualquer decisão que a senhora tomar respeitarei: manter  silêncio ou procurar a polícia.
Segurou firme a mão do amigo de longa data. Mesmo debilitada por passar dias na cama, ergueu o corpo, saiu da cama, agradeceu o amigo e disse:
     -- Vou fazer o que é certo!
Logo que senhor Adhemar saiu, Clementina foi ao banheiro, tomou banho, se vestiu de forma modesta, foi até o computador, conferiu o vídeo e seguiu em direção ao centro da cidade.
     Passos firmes adentrou a delegacia da mulher, pediu para falar com a delegada. A escrivã por conhecer clementina por anos, não chamou a delegada, preferiu conduzi-la  direto para a sala da chefe.
     Duas horas depois, Quinta-lua estava sendo levado até a delegacia da mulher. O detido, após ser identificado pela vítima e confirmar tudo, foi conduzido a uma cela.
     -- Dona Clementina, sinto muito por tudo, farei de tudo para manter esse traste preso até o julgamento. A prova é irrefutável: Sônia, a delegada lhe prometeu.
     Clementina apertou a mão de Sônia com as duas mãos e depois de um longo abraço, despediram-se e a vítima seguiu para casa.
     Cinco dias depois do ocorrido, Quinta-lua estava solto, correndo pelas ruas, como um aviãozinho.
     No mesmo dia em que o violentador estava gozando de liberdade, Clementina, durante o jantar, ficou sabendo da notícia. A mãe do doutor Arnaldo descobriu porque sentiu-se  tão mal no dia da formatura do filho: sua cria seria o defensor público do seu algoz.
     Foram várias tentativas para demover doutor Arnaldo de defender Quinta-lua. Mobilizaram-se familiares, amigos. O juiz da 4ª varal criminal não acreditava em tal absurdo. O juiz entrou com uma petição na OAB para retirar o caso em poder do doutor Arnaldo.
     Quinze dias depois de justificar legalmente o direito de defender Quinta-lua na OAB, a petição do juiz da 4ª vara criminal foi negada.
     Uma das alegações do doutor Arnaldo foi a de que, perante a lei todos são iguais e as leis prevalecem sobre a moral: tem a senhora Clementina como mãe, somente fora de seu trabalho, afirmou. Não podia usar da lei como lhe conviesse, mas em sua plenitude.
     Fechou sua defesa afirmando que tinha Deus como sua testemunha, agia unicamente com a verdade!
     Doutor Arnaldo seguiu com seu intuito de fazer justiça de olhos vendados, sem preconceitos ou princípios morais, apenas a lei. É Deus no céu e a lei dos homens na terra.
     A mãe não acreditava. Pensava que estava sonhando, ou estava vivendo sob o efeito de drogas pesadas. Um filho defender o estuprador da própria mãe!
     Os filhos e dona Clementina marcaram uma reunião familiar e convidaram o filho advogado. O advogado concordou em ir, deste que se sentasse à cabeceira da mesa, onde era o lugar que o pai sempre se sentava durante as refeições e reuniões familiares.
     As oito horas a reunião começou. Dona Clementina pediu para não defender o seu agressor, que passasse para outro profissional do direito. Arnaldo recusou terminantemente. Disse que jamais abandonaria o caso. Irmãos e irmãs insistiram, mas nada adiantou.
     A reunião não acabou, apenas foi dissolvida, pois a mãe se levantou sem dizer uma palavra e os demais seguiram a atitude dela, menos Arnaldo, o advogado legalista. O catedrático olhou bem à sua volta e murmurou: essa casa será minha”.
     Os dias se passaram, até que um dia, o oficial de justiça apareceu na porta da casa de Dª. Clementina, e disse:
     -- A senhora está intimada a comparecer no fórum para participar do julgamento referente à agressão que a senhora sofreu.
     A audiência aconteceu numa sexta-feira sombria. As duas horas da tarde, não havia sol, grandes nuvens negras cercavam toda a cidade. Uma ventania estranha, ora soprava para oeste, ora para o sul. Uma frente fria estacionou nas cercanias da cidade.
     Os irmãos do doutor Arnaldo não entraram na audiência a pedido da mãe. Estavam apenas a vítima, o agressor, juiz, advogado de defesa, promotor e um escrivão.
     Durante o processo, o advogado de defesa do agressor, alegou que Quinta-lua tinha dupla personalidade, mas que a mãe deveria ter feito algo para excitar seu cliente. Não poderia adentrar em assuntos de família, mas que era possível sim, que Quinta-lua foi provocado!
     O promotor que era o advogado de dona Clementina, apelou ao juiz que tudo que o Doutor Arnaldo dissera, era um absurdo! Sua cliente é uma pessoa de reputação ilibada, conhecida por quase toda a cidade, admirada e respeitada por todos.
     Após um longo tempo de debates, o juiz deu a sentença contrariando suas crenças, mas seguindo a interpretação da lei: deu causa favorável à Quinta-lua, encerrou o processo lamentando: ‘a lei é dura, mas é lei’.
     Uma semana depois do julgamento, Clementina e seus filhos mudaram de cidade, deixando a casa para doutor Arnaldo. A única coisa que a mãe pediu para Arnaldo, e ele atendeu de imediato, era para não procurar saber para onde ela e os irmãos estavam se mudando, e que jamais a procurasse.
     Passaram se alguns anos, Doutor Arnaldo estava a cada dia mais rico, mais gordo, mais temido por muitos da cidade.              Querido por uma minoria de psicopatas, sociopatas, políticos, transitava pela alta sociedade, entrementes, sempre era visto com desconfiança entre os poderosos.
     Tirava da cadeia qualquer cidadão que lhe pagasse bem. Traficantes, pedófilos, assaltantes, estupradores, ladrões. Nunca se preocupou para quem estava trabalhando desde que pagassem bem  e em dia.
     Quinta-lua durante esses anos progrediu na carreira, de vaporzinho virou dono de uma boca de fumo Sorte ou competência, tornou se um traficante forte. Fornecia drogas para várias bocas de fumo e em outras cidades.
     Pezão, outro traficante da região, tinha um funcionário muito bom na sua boca de fumo, que se chamava Pitbull. Ele vendia, entregava, recebia e mantinha o estoque sempre em ordem. Mas um X9 armou uma cilada e a polícia prendeu Pitbull em flagrante, um quilo de cocaína e cinco quilos de maconha.
     Pezão falou com Quinta-lua, disse que o moleque era dos bons e fiel, jamais entregaria qualquer chegado do grupo. Pitbull não poderia ficar na cadeia por muito tempo, lá seria arrebentado pela facção rival que dominava a cadeia.
     Quinta-lua ligou para doutor Arnaldo e foi logo recomendando:
     -- Oh Arnaldo, é o seguinte: você precisa tirar um dos nossos da cadeia, foi pego em flagrante. Olha, gaste o que precisar, mas nosso encarregado da boca não pode ficar preso. Entendeu?
     -- Tudo bem, mas já vamos acertar os valores agora. Olha, é tanto de entrada e depois que ele sair, você me paga mais tanto. Combinado?
     -- Combinado! Mandarei o cascalho da entrada amanhã cedo.
     No dia seguinte, doutor Arnaldo conseguiu convencer o juiz a deixar Pitbull numa cela separada e sozinho até a primeira audiência. Ligou para Pezão e garantiu que seu funcionário estaria seguro até o dia da primeira seção do processo.
     Pão-com-ovo, outro traficante da cidade, ficou sabendo que o advogado do Pitbull estava preparando para livrá-lo da cadeia. Pão-com-ovo avaliou cada detalhe, cada movimento do advogado, seus hábitos, locais que gosta de ir, com quem se relacionava e como encarava a vida.
     Por volta das duas horas da tarde, a campainha do escritório do advogado Arnaldo toca, a secretária pergunta pelo interfone:
-- Em que posso ajudar  senhor? Olhando pelo monitor interno.
-- Por favor, gostaria de falar com o doutor Arnaldo sobre uma demanda judicial. Meu nome é Dagoberto.
     Num breve momento e a porta foi destravada, se abriu e o futuro cliente entrou.
     -- O senhor pode entrar por aquela porta à direita, é a sala em que o senhor será atendido.
     A mesa tinha um semicírculo para acomodar a protuberância que formara na ponta da barriga do advogado.      Assim que os dois estavam sentados de frente um para o outro, Arnaldo perguntou em que podia ajudar.
     -- Doutor é o seguinte: meu nome é Pão-com-ovo, comando o tráfico no bairro da misericórdia e faço parte do comando que controla essa região aqui. É o seguinte, quanto estão pagando o doutor para livrar o Pitbull da cadeia? Vou lhe pagar três vezes mais para perder essa causa, e a facção vai ficar lhe devendo um favor.
     O defensor do protegido de Pezão pensou por um bom tempo olhando nos olhos do seu possível cliente. Era muito dinheiro na parada, afinal, já havia recebido uma parte do pagamento.
     -- Pão-com-ovo! Vamos negociar, mas quero meu favor no dia que Pitbull for trancado na cadeia em definitivo e sem isolamento. Ele ficara junto com os demais. Quero o pagamento no dia do julgamento. Concorda?
     -- Quanto ao dinheiro, estamos acertados, terá a grana toda em uma única maleta, mas qual é o favor?
     -- Quero que você mate o Quinta-lua um dia antes do julgamento. Você pode me fazer este favor?
     Após um curto período de tempo o traficante concordou. Iria arquitetar um plano para executar o estuprador da mãe do advogado.
     No final do terceiro mês, a audiência foi marcada. Pezão marcou com doutor Arnaldo de acompanha-lo, mas esperaria fora do fórum.
     Quinta-lua disse que estaria na cidade acompanhando tudo de perto. Pão-com-ovo garantiu que estava tudo confirmado, ele já sabia onde Quinta-lua estaria um dia antes julgamento. O plano seria colocado em prática.
     Quando o defensor de Pitbull estava saindo de seu escritório, um carro parou. Pensou que era Pão-com-ovo, virou e fechou a porta do escritório mas quando se voltou para a rua, dois homens o esperavam armados.
     -- Senhor, por favor, entre no carro.
     A porta de traz do carro já estava aberta. Assim que entrou, um dos homem entrou com ele e trancou a porta. À sua direita era um homem branco, forte, cabelos ruivos, cheio de tatuagens. À sua esquerda era Quinta-lua.
     -- Vamos passear e conhecer uns amigos meus Arnaldinho, disse Quinta-lua, sorrindo sarcasticamente para o advogado.
     O carro seguiu para fora da cidade, dez minutos depois pegou uma estrada de chão batido. Não demorou muito e chegaram a uma chácara. Todos desceram do carro e foram para dentro da casa. Na sala, Pão-com-ovo, Pezão e Pitbull esperavam.
     -- Arnaldinho! Você conhece o Pitbull? Por que ele é chamado de Pitbull? Perguntou Pão-com-ovo.
     O advogado pensou rapidamente antes de responder:  aqui é o meu fim, com certeza vão me matar, a questão é como. O porque está claro, Quinta-lua descobriu, com certeza, Pão-com-ovo caguetou me. Será que há outro advogado tão bom ou melhor do que eu?
     -- Não, eu não sei porque esse rapaz tem esse nome de cão de guarda.
     -- Pão-com-ovo, por que você me dedurou para o Quinta-lua? Vocês são de facções diferentes!
     -- É doutor, você pode ser muito inteligente com leis, mas no mundo do crime, você é burro demais. Você é muito inteligente com as pessoas de bem, pessoas simples, mas no meu mundo, você é um zero a esquerda, não passa de um prego, seu otário. Aqui na região só existe uma facção, as outras são invenções, pensadas e arquitetadas pelo nosso comando, seu mané.
     -- Mas e as mortes dentro do presídio, as brigas, as rixas, as bocas de fumo separadas?
     -- As mortes são acertos de contas de traidores, manés que tentaram roubar drogas, tentar sair fora. Aqui é o seguinte: quem entra só morre se tentar sair do grupo ou trair o comado.
     Quando Pão-com-ovo terminou de falar, Quinta-lua sentou-se  bem próximo do advogado e lhe falou:
     -- Antes te entregar para o Pitbull, quero que saiba uma coisa, seu pulha. Quem ganha grana humilhando, esculhambando a própria mãe não é confiável. Desde o dia que você fudeu com a sua mãe no tribunal, eu fiquei esperto com você. Sabia que um dia você iria me trair. Armei tudo, não foi difícil, afinal, você me ajudou a comprar o juiz. Olha aqui seu mercenário! Eu sou bandido e controlo com violência, para ser temido, jamais quis ser respeitado; agora vocês advogados, são literalmente filhos do capeta. A nossa diferença é simples, eu quero poder, vocês advogados querem dinheiro, dinheiro e mais dinheiro, não importa de onde sai a grana. O sentido da vida de vocês é o dinheiro.
     Quinta-lua deu um sinal para os colegas, eles ficaram ao lado do advogado, mandou ele tirar as roupas. Eles pegaram duas barras de ferro de quatro metros. Colocou uma do lado direito e a outra do lado esquerdo de Arnaldo, amarrou o com os braços esticados, passaram cabos de aços nos braços e nas pernas. O corpo ficou no vão das barras. Pitbull informou o chefe que estava pronto.
     -- Eu não quero ouvir você urrando como um porco doutor, então é o seguinte, Pitbull tapa a boca dele com uma maçã e pode levá-lo.
     Antes de ser amordaçado, Arnaldo perguntou para Pitbull o que iria acontecer.
     -- Doutor, sabe o que é porco no rolete? É isso que vai acontecer. Doutor!  Me chamam de Pitbull porque fico vigiando o porco o tempo todinho.
     Arnaldo não pensou na mãe, nos irmãos em ninguém. Apenas meditou: por que Deus permite que pessoas como ele nasçam...