A última gota de fel.

O ataque dos cães tinha deixado marcas profundas e doloridas.

Das mordidas jorrava o sangue escuro que encharcava a calça desfiada, cujo cheiro forte se misturava ao odor de bebida.

Oséas fechou os olhos, como se tentasse com aquele gesto apagar o que tinha acontecido.

A zombaria na rua, as quedas, o ataque dos cães, os ferimentos que sangravam.

Entretanto, queria mesmo esquecer os insultos que ouvira da mãe de suas filhas.

Ela tinha sido dura.

Bêbado. Fraco. Covarde. A mulher repetira várias vezes antes de expulsá-lo da casa que era dele, onde ela morava com as meninas.

Bêbado. Fraco. Covarde.

Ele apertou os olhos com mais força. Queria esquecer aquilo tudo e no dia seguinte começar uma nova vida.

Curaria as feridas, vestiria sua melhor roupa e sóbrio procuraria outra vez a mulher, exigindo seus direitos de pai.

Com dificuldade apoiou-se na cama e tentou ficar em pé.

Uma vertigem quase o derrubou.

Quando conseguiu se recuperar iniciou uma caminhada até a cozinha, deixando para trás o rastro de sangue.

Malditos cães. Esbravejou junto com alguns palavrões.

Antes de chegar à cozinha uma nova tontura o acometeu e ele foi ao chão.

Atirado no piso frio, tornou a pensar nos insultos da ex-mulher.

Nunca se sentira tão humilhado.

Ela não o poupara nem diante das filhas.

Bêbado. Fraco. Covarde e tantas outras acusações.

Ainda caído, acompanhou com os olhos embaçados a trilha de sangue pela casa.

O que seu pai diria se o visse daquela maneira?

E a mãe? Tão carinhosa, será que compreenderia o que estava acontecendo?

Sem forças para se levantar foi se arrastando na direção do armário onde uma garrafa de bebida continha uma ou duas doses de cachaça.

Beberia pela última vez, planejou. Tomaria um bom banho, trataria os ferimentos e no dia seguinte estaria bem para encarar as pessoas que tinham zombado dele na rua, desviar dos malditos cachorros, enfrentar a soberba da mãe de suas filhas.

Bêbado. Fraco. Covarde.

Num lampejo de lucidez, Oséas percebeu que muitas das ofensas sofridas não eram surpresas para ele.

Crescera ouvindo do pai, dos irmãos, dos colegas que era um homem sem coragem.

Diziam que ele não passava de um sujeito sem opinião, impotente diante das vontades e determinações alheias.

Não vencera o vício. Não salvara o casamento. Estava perdendo o direito de ser pai.

O pouco que construíra escapava de sua vida como aquele sangue que não parava de escorrer.

Oséas se sentou encostado na porta do armário, as mãos trêmulas percorreram o móvel em busca da garrafa.

Será que havia colocado em outro lugar?

O cheiro de aguardente impregnado em toda a casa aguçava sua vontade.

Quando enfim alcançou a garrafa comemorou.

Chegavam ao fim seus dias de humilhação.

Nunca mais serviria de piada para quem quer que fosse.

As filhas não se envergonhariam de um pai derrotado.

Abriu a garrafa e a entornou direto na boca, menos de uma dose aguardava no fundo do recipiente.

A última dose, pensou.

Dormiu ali, o sabor amargo da bebida, misturado á amargura que o acompanhava.

Acordou com o rosto mergulhado em seu próprio vômito.

As pernas ainda doíam, mas tinham parado de sangrar.

Quanto tempo tinha ficado ali?

Muito, mas não o bastante para fazê-lo esquecer da noite anterior.

Rastejou até o banheiro e enquanto se olhava no espelho depois do banho, teve a ideia.

Já no quarto, revirou o armário que despencava.

As mãos continuavam a tremer, aliás há alguns meses ,nem ele conseguia diferenciar quando estava bêbado ou sóbrio.

Quando encontrou o que desejava saiu.

Na rua, nem sinal das pessoas que haviam debochado dele na noite anterior, os cães se ocupavam com motos e bicicletas.

Oséas seguiu mancando.

Em sua cabeça confusa acreditava ser um homem prestes a alcançar a honra que jamais tinha experimentado.

O que o pai, a mãe, os irmãos, os colegas da juventude diriam dele?

A ex-mulher ainda o enxergaria como um fraco?

Chegou a casa em que ela e as meninas moravam.

Não precisou chamar muito, logo a mulher apareceu na janela e antes que ela iniciasse nova série de ofensas ele mirou a arma e atirou.

Tantas vezes que precisou se apoiar no muro para conseguir permanecer em pé até o último disparo.

Bêbado. Fraco. Covarde. Nunca mais.

Pela primeira vez, se sentiu em paz.

Uma baba escorria de sua boca amarga como fel.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 18/02/2017
Código do texto: T5916074
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