Chegada sob a tempestade

Chove lá fora, torrencialmente. A cidade toda parece se encolher sob o peso do céu que desaba em tons de chumbo, roncando como uma fera selvagem a cada clarão que ilumina e assusta os rostos que espiam por trás de cortinas entreabertas. A cada estrondo, as janelas do meu quarto tremem, chacoalham, reverberam. Nem de perto é a pior tempestade que já vi, mas esta é especial, singular. Pois, diferente de todas as outras que já presenciei, esta não me causa o menor temor. Nenhum sobressalto com os trovões ensurdecedores. Nenhum receio do vento que parece querer arrancar a terra de si mesma. Ao invés disto, minha mente vaga, tranquila como nunca antes esteve.

É estranho, mas desde que passei a me olhar no espelho e entender que aquele rosto era o meu, minha mente... Não, minha alma. Minha alma se recusou terminantemente a aceitar a conclusão lógica de que aquele rosto era meu. Aquela imagem era o que eu chamaria de “eu”.

Anos de dúvidas se seguiram, enquanto eu tentava, entre todas as vozes e opiniões em minha cabeça, decidir qual era a minha. Quantos eu carregava dentro de mim? Apenas um, mas eu era muitos. Todas as vozes eram uma e era a minha. Mas tudo sempre foi tão confuso. Incapaz de nascer ou morrer, eu me arrastava em inexistência, cruel irrealidade de ser. E as tempestades se seguiam, dia após dia, dentro de meu âmago, arrastando-se em uma infindável miríade de ventanias e intempéries. E a cada relâmpago por detrás de meus olhos, meu ser tremia em cruéis trovoadas.

Mas nessa tormenta que agora presencio, tudo muda. De repente, as vozes entram em harmonia. As faces se combinam numa idêntica à que sempre vi no espelho, embora completamente diferente do que eu me lembro de ver em meus reflexos. Tamanha contradição me arrepia, me perturba. Mas lentamente eu começo a compreender, quando sinto que alguém entra no quarto, sem abrir porta alguma nem esgueirar-se por qualquer janela. Eu sei que a morte se avizinha, mas sei que ela trás consigo um nascimento.

Meu quarto agora fede à suor e sangue. Aqui, agora, se dá minha morte por alguém que entra em meus aposentos sem usar nenhuma entrada humana. Não nego que sinto dores lancinantes. Mas a vida que é arrancada de meu corpo não é a minha. É a de meu hóspede invasor. Não é um assassinato, é um parto! Estou morrendo para dar a vida a este fantasma que entrou em meu quarto momentos atrás. Lentamente, enquanto fecho meus olhos, entendo. Em meus últimos momentos uma mão quente e terna pousa em meu ombro paralisado de dor e espanto. Apesar de humana em aparência e inumana em essência, esta mão não é de alguém vivo ou morto. Sequer é a mão de uma pessoa. Pois agora compreendo que não foi alguém que veio me visitar. Foi algo. Não se trata de quem está aqui comigo, se trata de o que está.

Sem forma ou tamanho explicável por expressões humanas, meu visitante finalmente me fita nos olhos. O que está aqui comigo, sou eu! Corpo, alma e consciência, de tudo abdico para que eu possa ter tudo que estou neste exato momento abandonando. Acabo de encontrar a criatura que me assustaria como jamais pensei possível. Muito além de um terror razoável, além ainda do terror primitivo que sentimos por instintos inexplicáveis, o medo que sinto agora me mata. Pois só assim, finalmente posso nascer na existência, finalmente posso ser parte da realidade. Eu estou chegando. Não... Eu já estou aqui!

José Julio
Enviado por José Julio em 10/01/2017
Código do texto: T5877980
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