O SOBREVIVENTE.

O universo oculto da escuridão é interrompido. Ele abre os olhos. Diante dele está a chuva de cinzas caindo do céu. O céu está parcialmente escurecido, coberto por montanhas de nuvens negras que se formam com a erupção das fumaças que sobem da terra.

Silêncio. Por contáveis segundos sua mente parece um vácuo, não sabe dizer onde está, o que aconteceu, ou mesmo quem ele é. Calado, apenas olha para a cena do céu diante de si, contemplando a chuva de cinzas, como se fossem milhares de pedaços de papel, minúsculos, pretos, caindo sobre seu rosto.

Nesse instante, o breve lapso de memória é interrompido por um aterrorizante e ensurdecedor estrondo seguido de outros estouros, mais baixos e mais curtos, porém, tão aterrorizantes quanto o primeiro. Os seus olhos dilatam-se, todo o seu corpo é dominado por incessantes tremores. Como se estivesse recebendo uma súbita descarga elétrica, assim ele tremia, incontrolavelmente.

Sua cabeça parecia um para-brisas de um carro em tempo de chuva, em rápido movimento de um lado para o outro, como se estivesse fazendo um gesto de negação constante. Ele estava em crise, em choque... As vozes, os gritos, os tiros, as explosões e a multidão desnorteada, são as primeiras cenas que retornam ao seu pensamento, seguidas da confusão de imagens que surgem aleatórias: homens armados, fuzis, metralhadoras, corpos, aviões, bombas, toda a cidade envolvida no caos. Pavor! O desespero total.

Nesse momento, um novo estouro ecoa em seus ouvidos. A memória sensorial de seu corpo, que antecede suas lembranças, acrescentava aos tremores reações de pequenos espasmos. Seus ombros, quadris, bracos e pernas, sacodem-se como se ele estivesse reagindo a várias pontadas de faca nessas regiões.

Chega em sua mente a cena do momento em que o caos foi interrompido pela completa escuridão, lembrou-se do aterrorizante instante em que outra claridade surgiu, parcialmente, por segundos, e o gigante cogumelo de fogo e fumaça foi visto a muitos quilômetros de distância se formando e subindo em direção ao céu, e do grande estrondo daquela imensa explosão que se seguiu. Esta foi a última imagem que ele presenciou…

No chão, caído nas cinzas, duas horas haviam se passado desde que ele abriu os olhos. Os tremores, pouco a pouco, foram diminuindo até sessarem. Sua mente se concentrava em um único pensamento: Vivo?! Seus olhos ainda permaneciam fixos olhando para o céu. Passavam-se mais alguns minutos. Perplexidade. Silêncio...

Ele resolve então olhar para os lados: vê um pedaço de concreto. Olha para o outro lado: a mesma coisa. Experimenta mexer a ponta dos pés, depois uma perma, depois outra: ele podia se mover. Experimenta virar-se para o lado esquerdo e consegue. Apoia-se com um dos braços no chão e eleva lentamente parte do seu corpo. O que vê são destroços, cinzas e fumaça por todos os lados. Eleva-se mais um pouco. Senta-se. Vê o seu próprio corpo coberto de cinzas, feridas e sangue. Do seu ponto de visão também podia avistar o que sobrou de outros corpos. Ele se apoia em um dos pedaços de concreto e, bem devagar, se levanta.

Ele mesmo estava sobre uma grande estrutura de concreto, acima de um amontoado de escombros. Como ele sobreviveu? Como não quebrou nenhum osso? Na verdade nenhum desses pensamentos sequer chegavam em sua mente. Ele pensava em uma forma de descer dos escombros. Ao tentar dar um passo, sente a dor intensa que vem das juntas de seu joelho esquerdo. Tenta outra vez. Para. Experimenta suportar a dor. Descobre que pode andar com dificuldade mancando com uma das pernas. Faz isso.

Lentamente, com esforço, chega ao chão. O que vê são crateras, fogo e mortos por todos os lados. Ao longe explosões sucessivas. O cheiro de enxofre e de corpos em decomposição é quase insuportável. A chuva de cinzas ainda é constante. Ele observa ao redor por alguns segundos e então caminha. Caminha e caminha, com dificuldade, mancando com uma das pernas. Nada vem à sua mente a não ser caminhar.

No caminho pisa despercebidamente em um pedaço de jornal. No que restou da folha queimada, suja de cinzas, deixada para trás, estava escrito com letras grandes: “HOJE INICIA, OFICIALMENTE, A TERCEIRA GUERRA MUNDIAL!”.

Até onde ele poderia ver ou ouvir, não existia mais nenhum outro ser humano, sobrevivente. Por quanto tempo ele caminharia? Não se sabe. Para onde? Em busca de quê? Nem ele mesmo saberia a resposta. Ele segue…

Jaildes Ferreira
Enviado por Jaildes Ferreira em 20/10/2017
Reeditado em 29/10/2017
Código do texto: T6148293
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