Pondo em ação
[Continuação de "Em trânsito"]
Quando o cruzador do Corpo de Monitores emergiu do hiperespaço, ainda no encalço do "rebocador" dos Construtores, seus três tripulantes perceberam de imediato que alguma coisa estava errada.
- Pensei que você tivesse dito que estávamos indo para o Rabicho de Nawagar - comentou o capitão Oscar Espinoza voltando-se para o navegador, Piero Monicelli.
Aturdido, Monicelli conferiu as telas de dados à sua frente.
- Mas nós estamos nas coordenadas previstas, capitão!
- Não há nada aqui... a não ser o espaço intergalático!
Efetivamente, o cruzador emergira num vazio negro, 2.500 anos-luz distante da Via-Láctea, que podia ser vista em todo o seu esplendor abaixo deles, como um transatlântico iluminado cruzando a noite. E, mais acima, o borrão luminoso da Galáxia Anã do Cão Maior, à 25 mil anos-luz de distância. Outras manchas luminosas contra a escuridão marcavam a posição de vários aglomerados globulares e galáxias próximas... mas nenhum sinal do Rabicho de Nawagar, um aglomerado aberto de cerca de 100 anos-luz de comprimento e que continha algumas dezenas de estrelas!
- Nós estamos no Rabicho... - insistiu o navegador. - As estrelas podem ter desaparecido, mas não a massa delas. Posso "vê-las" no gravímetro!
E apontou para uma fileira de números fluorescentes numa tela à sua frente. Espinoza aproximou-se para ver melhor.
- Se não podemos vê-las... teriam sido engolidas por um buraco negro?
Monicelli balançou negativamente a cabeça.
- Capitão, não há registro de buraco negro que funcione de forma tão rápida... mesmo que houvesse começado a sugar as estrelas vizinhas 2.500 anos atrás, quando a luz do Rabicho que dele vemos hoje chegou à Via-Láctea, ainda deveria haver algum sol nas redondezas... e fortes emissões de raios-X e gama. Não há nada disso nos instrumentos... só um pouco de radiação infravermelha emitida de um ponto no que era o centro do aglomerado.
Irma Gabor, a Chefe de Operações, aproximou-se dos outros dois tripulantes.
- E aposto que é para esse ponto que o "rebocador" está indo - observou.
- Exatamente - corroborou Monicelli.
- Precisamos ver o que é - decidiu-se Espinoza. - Mas mantenha as máquinas prontas para nos tirar daqui o mais rápido que puder. Estou sentindo cheiro de armadilha.
Cautelosamente, o cruzador manteve-se afastado 50 mil km do veículo não-tripulado dos Construtores, que mantinha seu curso inalterado rumo ao que parecia ser... nada. E então, subitamente, um ponto luminoso surgiu na borda do radar de longa distância.
- Temos contato de radar... é algo grande...
- Nada no visual - Espinoza havia desviado os olhos para a tela frontal. - Ponha no infravermelho.
O navegador digitou alguns comandos no console à sua frente e um borrão avermelhado surgiu na tela frontal. Lembrava um domo, com uma esfera colada na parte inferior.
- Qual é o tamanho disso? - Indagou Espinoza.
- Capitão... os instrumentos devem estar em pane. Isso não pode ser real!
Espinoza inclinou-se sobre a tela e exclamou:
- Diâmetro estimado... seis ANOS-LUZ?!
- Dois parsecs de diâmetro... essa coisa tem quase dois malditos parsecs de diâmetro!
Espinoza engoliu em seco.
- Reverter motores! Vamos fazer um salto de emergência para o hiperespaço!
Monicelli moveu teclas e chaves no console. Algumas luzes vermelhas se acenderam. Em desespero, ele voltou-se para Espinoza:
- Motores não respondem... fomos pegos por algum tipo de raio-trator. Vai nos conduzir direto para a megaestrutura dos Construtores!
* * *
- Inspetor? Mensagem para o senhor.
Wilmer Hasselblad, inspetor da Pesquisa Colonial, voltou-se para seu assistente gog, Inwnungi, que lhe estendia um ansível na ponta de um tentáculo. Apanhou o dispositivo e após agradecer, comentou:
- Ah, é da equipe do Espinoza...
- Tudo bem com eles, inspetor?
Hasselblad terminou de ler antes de responder, cenho franzido.
- É da Dra. Takahata... Espinoza, Monicelli e Gabor estão desaparecidos!
- Pensei que eles viajassem juntos... - ponderou Inwnungi, com sua voz de trovão.
- E viajam. Mas a equipe se separou em Moabe-6387-V, por alguma razão que não está explicada aqui. Takahata e Oberth ficaram no planeta e os outros três seguiram na espaçonave. Ela acabou voltando ao ponto de partida, em piloto automático... vazia.
- Parece ser um caso para o Corpo de Monitores, inspetor.
- E é... pelo menos à primeira vista. Eles também foram avisados, e a minha amiga, capitã Marjani Nnamani, está encarregada da investigação. Talvez ela possa me dar maiores detalhes sobre o acontecido...
Digitou uma mensagem no ansível e não teve que esperar muito para receber uma resposta.
- Você não vai acreditar, Inwnungi... ela está a caminho daqui! Parece que a Federação Galática recomendou que eu fosse incorporado à sindicância.
- Bastante natural, inspetor, dado à sua expertise em resolução de problemas complexos - comentou o gog em tom casual.
Hasselblad olhou para o assistente com uma sobrancelha erguida.
- Partindo de você esta observação, Inwnungi, fico me perguntando se não há alguma ironia implícita...
- Inspetor, desde que o vi desempatar a votação para Líder Supremo de Hargog, convenci-me de que numa encarnação anterior, o senhor foi um gog!
Antes que Hasselblad o pudesse acertar com o ansível, Inwnungi retirou-se da tenda onde estavam, com surpreendente rapidez para uma criatura que se movia sobre quatro pernas curtas.
* * *
- Bem-vinda à Arapa-IV, capitã Nnamani!
A capitã agradeceu as boas-vindas com um abraço e um beijo em cada bochecha de Hasselblad, que corou. Ao perceber isso, ela deu uma gargalhada.
- Suecos... me desculpe, inspetor!
- Ah... não foi nada, capitã. Não é que nós suecos não exteriorizemos nossa satisfação por reencontrar alguém de quem gostamos, mas geralmente somos bem menos expansivos...
- Tudo bem com o meu abraço? - Perguntou ela, muito séria.
- Senti falta dele! - Hasselblad riu, mas pareceu ficar sem graça.
- Então... foram os beijos no rosto? Suecos não beijam os amigos no rosto?
- Bem... não é muito comum... sem ofensa... eu até gosto que você me beije!
A expressão de Nnamani suavizou-se e ela piscou um olho para ele.
- É bom ouvir isso, inspetor.
- Wilmer.
- Wilmer. Então, terá que me chamar de Marjani.
- Marjani. Temos algum tempo para que me explique o que está acontecendo, antes da partida?
- Temos sim.
E olhando ao redor, no descampado onde estavam, no qual a única construção visível era a estrutura da grelha de aterrissagem, onde ela pousara o seu cruzador espacial:
- Onde você está instalado? Não há base da Pesquisa Colonial neste fim de mundo...
- Não, não há. Está vendo aquela floresta de árvores azuis adiante? As tendas dos melkis foram armadas sob elas. São nômades... e reservaram uma tenda de cortesia para nós.
Nnamani balançou a cabeça, admirada.
- Não sei o que você viu em Arapa-IV, Wilmer... mas deve ser algo muito bom para você querer ficar aqui, num local sem a mínima infraestrutura, longe de tudo, e sem outros DBDG próximos...
- Sei que vai parecer estranho o que eu vou dizer, mas se porventura eu acordasse um dia transformado em inseto, e pudesse escolher qual inseto seria... creio que gostaria de ser um melki.
- Wilmer! Começo a achar que os melkis são os suecos dos insetos!
A ideia era tão estranha que Hasselblad teve de rir. Mas, lá no fundo, pensou que ele sim, era o mais melki dos suecos.
* * *
Na tenda montada pelos melkis, Hasselblad ouviu com apreensão o relato feito pela capitã Nnamani, montado basicamente a partir das informações da Dra. Takahata e da telemetria do cruzador de Espinoza. O diário de bordo da nave havia sido apagado, propositalmente.
- Primeiro as Anomalias Orbitais, em Aachen 6987 e aqui em Arapa... e agora essa megaestrutura alienígena no espaço intergalático! - Espantou-se o inspetor. - Pergunto-me se esses estranhos fenômenos estarão interligados.
- Pelo que vimos em Aachen 6987, as mesmas entidades podem estar por trás de ambos os incidentes... - ponderou Nnamani. - Mas este do Rabicho de Nawagar assusta muito mais, até pelo tamanho do artefato e pela destruição sem pistas de dezenas de sistemas solares.
- Sem dúvida alguma. Precisamos seguir para Moabe-6387-V e traçar o nosso plano de ação daqui para a frente.
E, como quem lembra de algo importante:
- Mas já que está em Arapa, Marjani, não quer conhecer a rainha dos melkis? Ela adora receber visitas, é uma criatura tão solitária...
- Ouvi dizer que ela tem um título assustador... Rainha dos Amaldiçoados, é isso?
- Sim, é isso - riu Hasselblad. - Mas o título tem mais a ver com castigo do que com medo... os melkis foram privados de praticamente tudo, e se conformaram de um modo admirável. São criaturas estoicas.
- Bem... creio que uma visita rápida não irá nos atrasar demasiado - concedeu Nnamani.
- Há, entretanto, um ritual a cumprir... - começou a falar Hasselblad. E parou.
- Prossiga - incentivou-o a capitã.
- Teremos que ficar os dois só de roupa de baixo - concluiu ele após um silêncio embaraçado.
Nnamani soltou uma gargalhada.
- Eu sabia que tinha alguma coisa por trás desse convite!
E erguendo-se da cadeira de armar onde estava sentada, já com a mão sobre o zíper frontal do uniforme:
- Já posso tirar a roupa?
- Calma, Marjani... antes tenho que avisar à rainha que estamos indo vê-la. Depois, as servas virão nos preparar para o encontro.
E dando uma risadinha:
- Só aí é que tiramos a roupa.
- Ewe! - Exclamou Nnamani. - Quanta burocracia!
[Continua]
[16-10-2017]