Caminhoneiros do espaço
Não se podia dizer que a companhia não investia na formação de mão-de-obra qualificada. Investia, e muito. Afinal, para operar equipamentos que valiam dezenas de milhões de dólares, mesmo com auxílio da mais avançada automação disponível, o elemento humano bem treinado ainda era essencial. Os primeiros passos, como seria de esperar, exigiam sacrifício pessoal. Os aspirantes a compor a tripulação permanente de uma nave comercial tinham muitas vezes que passar longos períodos no solo - numa das várias bases que a empresa mantinha em sistemas solares num raio de 20 anos-luz da Terra. O serviço nessas guarnições podia durar meses - anos, em alguns casos - sem que surgisse qualquer vaga numa nave de carreira. Eventualmente, alguém entrava em férias - que podiam durar até um ano para os oriundos do espaço profundo - ou algum acidente trágico tornava a substituição de um membro da tripulação indispensável.
Rebecca Martínez, seis anos de companhia, estava há dois estacionada em Gamera, como informalmente era conhecido o planetoide LK-621, nos confins do sistema Luyten 143-23; distante cerca de de 15,5 anos-luz da Terra, Gamera era pouco mais do que uma parada de caminhoneiros no meio do nada. "Quanto mais longe da Terra", haviam lhe dito, "maior o bônus de transferência e maiores as possibilidades de arranjar uma vaga de tripulante". A parte do bônus era verdadeira, embora simplesmente não tivesse onde gastar o dinheiro que era depositado todos os meses em sua conta bancária. Quanto à vagas...
Havia acabado o seu turno no controle de terra, e se preparava para ir para o bar da base tomar uma cerveja e jogar um pouco de conversa fora com as tripulações recém-chegadas, quando a tela do intercom acendeu-se. Sentou-se novamente em sua cadeira e apertou o botão de "receber". Viu diante de si o torso de um homem oriental, cerca de 50 anos de idade, cabelos cortados rente, usando uma jaqueta cinza da companhia com divisas de capitão e um emblema sobre o bolso que identificava sua nave: o cargueiro classe M "Nan-Shan".
- Operadora Martínez?
- Pois não, capitão...?
- Wang Luoyang. Pedi um navegador substituto ao RH e me indicaram você. Tem alguma experiência prática no Lockmart CM-86?
- Sim, capitão. Basicamente, manobras orbitais: inserção em órbita, acoplagem e desengate. Pouso e decolagem não me permitiram praticar, mas tenho 300 h de simulador neste modelo.
Luoyang balançou a cabeça, aparentemente satisfeito.
- Eu vi suas notas, foram muito boas...
- Grata.
- E eu realmente vou precisar de uma navegadora com prática em manobras orbitais para levar meu barco até 61 Virginis e recolher a carga que está lá. Você me parece uma boa escolha.
"E sou praticamente a única que terá nesse fim de mundo", pensou Martínez.
- Trata-se de uma vaga temporária ou permanente, capitão Luoyang?
- Se você se sair bem nesta viagem, poderá se tornar uma vaga permanente.
- E a pessoa titular da vaga, o que houve com ela?
Luoyang hesitou por um momento. Depois, lançou-lhe um olhar franco.
- Infelizmente, perdemos a pessoa que ocupava este cargo num trágico incidente. Daí a urgência na substituição, a minha oficial executiva está acumulando funções.
"Parece que alguém teve que morrer para que eu pudesse sair desse buraco", veio à mente de Martínez.
- Qual a sua previsão de chegada à LK-621, capitão?
- Dois dias siderais.
- Vou fazer minhas malas. Buzine quando passar em frente.
* * *
A parte sobre buzinar fora uma brincadeira, mas o capitão Luoyang estava com pressa de verdade. Sequer desceu à base para buscar a nova tripulante: mandou uma vedeta de desembarque controlada remotamente recolhê-la. Martínez despediu-se dos (poucos) amigos que fizera durante sua permanência naquela bola de metano congelada e partiu, aliviada. Já em órbita, avaliou o "Nan-Shan" à medida em que a vedeta se aproximava dele: um típico cargueiro classe M, medindo mais de 300 m de comprimento por cerca de 200 m de largura e quase 100 m de altura. Para controlar o gigante, contudo, era necessária somente uma tripulação de sete pessoas. Seis, no momento.
A vedeta entrou em seu hangar na lateral da nave, e o recinto foi pressurizado. Viu-se então frente à frente com o capitão Luoyang e sua oficial executiva, Hanna Polczynska, uma loura grande de cabelos encaracolados, ostentando uma tatuagem de código QR no lado esquerdo do pescoço.
- Bem-vinda à bordo! - Saudou-a Luoyang. Polczynska a abraçou, com alívio mal disfarçado.
Em seguida, foi levada para conhecer as instalações do deque superior, onde a tripulação operava a nave e também passava a maior parte do tempo em que estavam acordados. Na ponte de comando, na parte frontal do cargueiro, encontrou os quatro outros membros da "Nan-Shan": Miles Stevenson, engenheiro de sistemas, Anton Tikhonovich Salnikov, chefe de manutenção, e sua assistente, Kamile Umbraite, bem como o dublê de oficial de ciências e médico de bordo, Bedyw Pryce.
Feitas as apresentações, o capitão Luoyang apontou-lhe a poltrona de pilotagem, voltada para as janelas de observação panorâmica na proa e disse:
- Agora que já conhece todos, que tal nos colocar a caminho de 61 Virginis?
- É pra já, capitão - respondeu Martínez, instalando-se no assento e começando a introduzir as coordenadas no computador de navegação.
- Prontos para seguir - informou.
- Informe à base e vamos sair de órbita, navegadora.
- Sim, capitão.
Ao apertar o botão do intercom para falar com sua substituta, pensou que agora os papéis estavam trocados.
- Cargueiro "Nan-Shan" informa que retomará seu curso para 61 Virginis. Me deseje boa viagem, Mary Jo.
- Boa viagem, Rebecca. A "Nan-Shan" está liberada para sair de órbita.
Martínez acionou os retrofoguetes e a nave girou sobre seu eixo, dando a ré para LK-621.
- No curso, capitão - informou.
- Toda a força à frente, navegadora.
Martínez empurrou vagarosamente para a frente os controles de propulsão, e sentiu o casco da nave vibrar sob seus pés.
Com um rugido dos propulsores gêmeos Rolls-Royce N62 Typhoon, a "Nan-Shan" saiu de órbita e embicou para o espaço profundo.
- [08-08-2017]