Porta dos fundos

Acordou às 5:30 h da manhã, sentindo frio, apesar do edredom colocado sobre o lençol. No quarto escuro, olhou para a parede e viu que a luz do termostato estava vermelha, não verde. Tateou no criado-mudo, em busca do celular e apertou o botão "home". A hora estava sendo exibida, mas não mais do que isso. Não conseguiu desbloquear o aparelho, e com certeza, não trocara a senha de acesso. Ao seu lado, na cama, a esposa estremunhou:

- O que foi?

- O termostato... acho que deu defeito.

- Vai ver...

Ele afastou o edredom e sentou-se na cama. Foi quando notou o barulho. Motores de jato, revertendo. E o som estava alto demais. A casa ficava na rota de descida para o aeroporto, mas os aviões deveriam passar a pelo menos 500 m de altura. Este, estava bem mais baixo. Os vidros da janela estremeceram, quando o quadrimotor passou num rasante sobre o bairro.

- Meu Deus... mas o que é isso? - Indagou-se, pondo-se de pé.

Apertou o botão de liga-desliga do termostato, sem causar nenhum efeito. A luz-piloto continuava vermelha. Decidiu então sair do quarto e foi até a sala, ver se havia algo no noticiário da televisão. A TV de LED, afixada à parede, acendeu-se, mas exibiu apenas uma imagem estática onde se lia: "ESTAMOS COM PROBLEMAS TÉCNICOS. AGUARDE". Em todos os canais que tentou sintonizar, viu a mesma mensagem ou então uma tela azul, indicativa de que a emissora estava fora do ar.

Aproximou-se da janela que dava para a rua, e afastou a cortina. Lá fora, os postes de iluminação ainda estavam acesos, e uma neblina densa tornava difícil ver além de algumas dezenas de metros. Não havia nenhum movimento visível, fosse de pessoas ou veículos. Resolveu voltar para a cama.

- Descobriu o que houve? - Indagou a esposa, sem abrir os olhos.

- Algum tipo de pane; parece ser geral - desconversou. - De manhã, descobriremos.

Aconchegou-se à mulher e acabaram por adormecer.

* * *

Acordou cerca de duas horas depois, com o dia claro. Ao olhar para o termostato na parede, viu a luz verde acesa. Buscou o celular e conseguiu facilmente desbloquear a tela. Teria sonhado com os acontecimentos da madrugada?

Não. Ao abrir o navegador e procurar por notícias, viu logo que um "apagão" eletrônico havia varrido boa parte do território continental dos Estados Unidos na noite-madrugada anterior. Os sistemas afetados estavam voltando à normalidade, mas ainda não havia nenhum consenso sobre o que causara a pane.

A esposa acordou. Inclinou-se e beijou-a. Ela fez uma careta.

- Ai! Antes de escovar os dentes...

E cobrindo os olhos com o braço.

- O que foi aquilo, da madrugada?

Ele afundou-se na cama.

- Suspeitam dos chineses. Criamos a "internet das coisas" e eles nos venderam o hardware. Parece que o "negócio da China" não foi bom somente para nós...

- Os chineses estão nos chantageando?

- Eu diria que eles nos venderam uma casa e ficaram com a cópia da chave da porta dos fundos. Agora, parece que resolveram nos visitar e vão querer fazer mudanças na decoração e na mobília.

- Onde isso vai parar? - Suspirou a mulher, sem abrir os olhos.

- Honestamente? - Retrucou ele. - Eu não sei.

Olhou ao seu redor, para todos os dispositivos visíveis e não-visíveis, equipados com diminutos processadores fabricados na China. Se aquilo da madrugada fora um teste, perguntava-se o que poderiam fazer quando fosse para valer.

- [26-06-2017]