Antiga Jornada

................................Antiga Jornada

“O javali é o lobo do homem: quem domina o javali, domina o mundo.”

Na principal entrada da cidade, sobre o arco que guardava pesado portão de madeira e ferro, vivia esta inscrição muito bem estampada e impossível de não ser vista mesmo a longa distância.

Logo acima da escrita fulgurava imensa gravura em alto relevo representando o rei acompanhado de portentoso animal, ambos usando armaduras de guerra e desfilando, altivos, num impressionante descampado pós-batalha, repleto de crânios e cadáveres.

Há muito tempo, um ascendente da atual realeza, depois de massacrar amigos e inimigos - por prazer ou astúcia - trouxe para seu castelo e instalou ao lado do trono um formidável animal, espécime de rara ferocidade, com presas exuberantes e ameaçadoras, sempre limitado por correntes, mas aparentemente submisso a seu senhor.

Este monarca mandou cunhar sua linha de governo e visão do mundo em pedra e desde então, isso era lei.

Durante algum tempo, é claro, muitos ousaram desafiar a predição. Foram dizimados por estratégia de guerra e habilidade.

Com o passar lento das eras, distribuição farta de almas para outros mundos e o aumento rápido das lendas, a quimera se tornou concreta. O medo nem era motivo de discussão, cristalizou-se nos corações.

Os descendentes no trono foram se aprimorando. As bestas, sendo substituídas, moldadas e treinadas, sempre maiores e mais brutais enquanto a nobre corte se fortalecia e o povo, escorria à míngua.

Tamanha ficou a crença no poder dominante que anualmente era realizado grandioso evento onde qualquer um poderia desafiar a autoridade suprema numa luta individual de armas contra Sua Majestade, se abatesse seu animal primeiro, seja bem dito.

.........Esse desafio festivo foi batizado Encontro Real.

Geralmente, apenas os desesperados da vida ou aqueles condenados à morte por um crime ou outro, é que ousavam entrar na arena.

O espetáculo era sangrento e ressoava sempre com a vitória do selvagem sobre a pobre carcaça do desafiante. Não havia virtude nessa luta. A cada ano, a multidão urrava mais e se comportava num crescente desvario, numa sede de tragédia sem explicação, contida duramente a ponta de lança e espada.

O poderoso líder assistia impávido a seu “monstro” destroçar aqueles arremedos de gente enquanto mirava o pavor nos olhos das pessoas, estivessem elas distantes ou próximas.

Contam que certa vez, um dos ministros mais importantes fez a seguinte pergunta num momento ébrio de pensar:

- Vossa Majestade, o que aconteceria realmente se por acaso um desses infelizes vencesse sua fera? – disse incauto, sorrindo; a pergunta vazada em público.

Calmamente então, o rei se aproximou do subordinado, desembainhou o punhal que tinha à cinta e o enterrou no peito do notável, dizendo:

- “Isso” aconteceria, ministro.

Antes mesmo do corpo cair com a lâmina ainda presa em si, o autor já se retirava do ambiente. Essa era uma questão para a qual ele não pensava, nem queria, outra resposta.

Neste ano não seria diferente e os preparativos para a matança estavam bem avançados.

O Dominador (título honorífico predileto do monarca) gostava de conhecer todos os detalhes. Para tanto, investigava quaisquer inscritos, inclusive o insólito viajante que se atreveu a tanto.

Esse estranho havia aportado na cidade há poucas semanas. Era magro, de certa idade, barba por fazer.

Exceto por suas vestimentas, que logo o denunciavam como intruso, passaria por homem trivial.

Quando de sua chegada, os guardas o interrogaram sem interesse:

- Alto – disse a vigilância – qual seu nome, de onde vem e o que pretende?

- Venho de tempos e locais diversos, procuro a verdade do Encontro Real, chamo-me Darta – respondeu, sem medo na voz.

- Não traz bagagem ou armas? – insistiu por rotina, o soldado.

- Ainda não, talvez somente essa bolsa e uma mala que deixei escondida na floresta – disse sério.

Os guardas, após essa fala confusa, consideraram-no mais um estúpido das festas vindouras e deixaram-no ir adiante sem grande preocupação.

Darta hospedou-se no primeiro local disponível e saiu às ruas em busca de melhores elementos sobre o desafio.

Não havia lugar mais rico para se informar do que a grande feira da cidade. Tudo era motivo de assunto. Ele se aproximava de cada grupo, fosse pequeno ou grande. Ouvindo e anotando. Fez isso seguidamente.

Estava se tornando conhecido no local, quando decidiu expressar opinião durante acalorado embate a respeito das mentiras, fome e violência do reinado:

- Vocês todos tem medo de um porco? – perguntou com estudado assombro.

O silêncio foi visceral. E Darta continuou:

- Sim, pois nos últimos dias em que aqui estive ouvindo todos, tudo que tenho escutado é o mantra: “quem domina o javali, domina o mundo”. Ora, o javali é um porco, não é? Talvez grande, mas continua porco - fez uma pausa e arrematou:

- Vocês temem e seguem, na verdade, um porco comandado por outro, não sei em qual ordem – o rosto dele estava serenado.

- Forasteiro – disse um ancião de grave semblante – bem se vê que você não entende o mal. Suas palavras, em minutos, brotarão nos ouvidos do rei. Em algumas horas você estará enforcado. Eu posso denunciar sua morte pois sou velho e velhos são mortos que falam. Sua boca o condenou. Fuja, talvez haja tempo – encerrou a fala, o idoso.

- Fugir por medo não é viver. Não receio porcos. Vocês também não, talvez tenham esquecido. – retrucou calmo - Mas não se preocupe, meu bom senhor, sou precioso para a encenação grotesca lá deles. Há muito inscrevi-me para o Encontro Real. Tenho privilégios, conforme a regra – anunciou Darta sob o olhar ainda mais incrédulo dos ouvintes.

O velho tornou a pronunciar:

- Seu privilégio final será uma morte horrível, por isso concedem a breve ilusão da liberdade – não houve risos ante a covardia dos fatos.

No palácio, os informantes transmitiram integralmente os detalhes da reunião na feira, principalmente a ofensa ao seu líder.

- Esse reles sujeito chamou-me porco comandante de outros? – gritou surpreso o Dominador – pois que seja o primeiro a enfrentar nossa fome – olhava fixo para o nada - vigiem de perto, caso ele sofra um súbito arrependimento – disse por fim.

Nessa noite, Darta se recolheu cedo. Depois de tanto coletar dados, mediu, calculou e pesou seu único trunfo contra a força que enfrentaria.

Na manhã seguinte, despediu-se da estalagem e foi para o grande teatro montado para a diversão das massas. Durante todo o trajeto percebeu que era seguido pelos guardas reais, os quais não se escondiam, em absoluto.

Àquela altura sua fama já tinha contagiado a cidade e muitos queriam ver o homem que insultara o nobre soberano, mesmo sabendo que aplaudiriam seu extermínio em seguida.

Darta chegou ao Encontro levando consigo apenas sua bolsa a tiracolo.

- Por aqui – disse-lhe um oficial bem sorridente - você é o prato de entrada – e o conduziu por um túnel ao subterrâneo do imenso estádio. Às suas costas uma sólida porta fora cerrada.

Ao nível do chão, a festa corria movimentada. Gritaria e brigas, bebidas e pessoas se espremendo nas arquibancadas circulares que davam visão ao grande centro e à tribuna onde estavam o monarca e sua numerosa corte.

As trombetas soaram anunciando a fala principal.

- Povo da minha terra, terra de meus ancestrais – muitos se calavam ou eram calados a contragosto – escutem a sabedoria: O javali é o lobo do homem, quem o domina, domina todos – o rei floreava seu brasão e a multidão entendia – vocês são meu mundo!

Em suas mãos, uma bela taça com vinho.

- Hoje – continuou ele – nos reunimos para celebrar essa verdade. Quem dominará o javali? Novamente, saberemos. Que se inicie a disputa. Soltem o predador e sua presa – dito isso, cuspiu no cálice e o atirou ao solo.

As ovações foram histéricas. Tiras de tecido vermelho caíram em linhas retas por todo canto. O som dos bumbos e cornetas ditava a cadência da platéia.

Então uma elaborada grade baixou e um homem estranhamente trajado, como se com bastante frio, surgiu. Trazia sobre os olhos lentes escuras protetoras, além de boca e nariz tapados com pano. Seus pés estavam bem calçados. Apesar disso, os freqüentadores da feira o reconheceram como o curioso atrevido; os demais também assim deduziram e, animados por sua ousadia, começaram a gritar:

- Quem tem medo do porco? Quem tem medo do porco?

O monarca ficou branco como o algodão vindo das terras distantes.

Ordenou que liberassem a fera imediatamente. Queria abafar em sangue, os gritos.

Darta estava no centro da arena e olhava diretamente para o suserano. “Pobre e ridículo tolo”, pensou.

“Quem tem medo do porco?”, ele ainda ouviu o público gritando: – continuem – pediu em baixa voz.

Porém, a gritaria estacou quando o javali veio ao campo de combate.

O animal movimentou sua enorme cabeça de um lado a outro, lentamente, vistoriando todo o estádio, sugerindo um cumprimento macabro aos presentes.

Havia saliva escorrendo de sua boca formando poças no terreno abaixo de seu queixo. Seus pelos duros estavam eriçados e brilhavam, parecendo polidos à mão. Adornos de metal trabalhado enfeitavam seu peito e pernas musculosos.

A população nunca havia visto esse animal. Era gigantesco. Talvez duas vezes maior que o do ano passado e mesmo esse já era enorme.

Darta sentiu um gelo cortante na espinha. Não havia previsto um bicho tão grande. E se arrepiou mais quando notou que o rei lhe apontava algo. E era sua mala. A qual estava (ou deveria estar) abrigada na floresta.

“Desde quando ...?”, “Será que ele sabe?” perguntou a si. “Não interessa agora, lá vem o gigante”, concluiu ao sentir a vibração em seus pés.

Alheio a dúvidas, o javali fez o que lhe foi ensinado: correr para matar assim que estivesse livre.

Darta viu a areia ser jogada ao ar pelas patas do animal. Levou a mão ao bolso, puxou um pequeno pote e o abriu de um só golpe.

Embora seus movimentos tivessem sido rápidos, o ser mítico já estava quase em cima de si. Darta não teria outra chance. Na confusão do ataque, ele se desviou o suficiente, não sem antes arremessar o conteúdo do recipiente no focinho da fera, que o respirou praticamente por inteiro. Era um pó esverdeado e de fina textura.

Como o animal havia errado o primeiro bote a velocidade intensa, levou muitos metros até parar completamente e se reposicionar para novo ataque.

Darta esperava que o discreto artifício químico lançado fosse o suficiente, caso contrário, não voltaria para sua família jamais. Ele baixou o lenço que protegia seu rosto.

- Mate-o agora – grunhiu colericamente o rei.

A fera, como se ouvindo seu dono, balançou a cabeça algumas vezes, talvez mesmo firmando a mira, e se atirou ao encontro de sua nova vítima.

Não se ouvia palavra.

Os olhos fechados de Darta não viram de pronto, mas o bruto, após reiniciar com vontade, desanimava a cada passo, até chegar trôpego para se deitar aos seus pés, em sacrifício.

O javali estava dominado.

Por alguns instantes as pessoas não compreenderam o que tinha acontecido. O rei sim, porém quando tentou outro refúgio, sua prodigiosa, assustada e curiosa comitiva, involuntariamente, o atravancara.

Então começou devagar. Alguém sozinho lembrou, em voz, para si mesmo:

- Quem tem medo do porco?

Outras pessoas ouviram e repetiram:

- Quem tem medo do porco?

Até que um grito de trovão explodiu e foi ouvido por muitos e muitos quilômetros:

- O porco está morto. Matem o porco!

A turba também solta de suas algemas auto-impostas correu a beber todo o sangue que pudesse.

...

Darta só conseguiu procurar sua mala depois de muito tempo.

Encontrou-a debaixo dos escombros do trono. Dentro dela, poucos livros, sua missão e os instrumentos necessários para o retorno a sua terra. Estava suja, mas intacta.

“Nem tentou abri-la. Sua arrogância me salvou”, disse sozinho.

Ao sair pelas ruas incendiadas da cidade, ele se deparou com um javali-filhote, um dos muitos considerados intocáveis até então. Para evitar que fosse apenas mais um assado, passou-lhe uma corrente ao pescoço e sem ser incomodado por ninguém, partiu para iniciar sua viagem de volta.

Entrou na floresta com sua mala, sobretudo de couro, capuz, seus óculos escuros, suas vestimentas de proteção contra o veneno usado e o dócil animal ao lado.

Iria libertá-lo em breve.

Olisomar Pires – escritor – conto de ficção

Concurso site Entrecontos - 27º lugar

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 24/06/2017
Código do texto: T6036474
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