O Peso-Pesado (Uma Crônica em O Sonho de Hitler)

No ano de 2017 os processos de recombinação genética já eram moda na Europa Nazista. Os atletas arianos utilizavam-se de todos os avanços científicos para ultrapassar os limites naturais da raça humana e atingir o que Hitler havia descrito como Ubermensch ou o “Homem Superior”. O resultado desse ideal era a sucessiva quebra de records mundiais nos mais variados esportes, bem como o surgimento de uma Elite esportiva alemã que estava muito a frente dos atletas sub-humanos usados em eventos esportivos recreacionais nas colônias. Adilson era o melhor boxeador da colônia sul-americana e mesmo sendo um sub-humano (um não alemão) era fonte de conjecturas entre os fãs do esporte locais. Alguns diziam que ele poderia vencer um atleta alemão do circuito principal europeu de boxe. Eram, no entanto, apenas um exercício de “e se”, já que eram proibidas as lutas entre servos sub-humanos e cidadãos arianos.

Ernest bebia em um clube na cidade baixa do Rio de Janeiro. Seu problema com a bebida estava cada vez pior, ele nem lembrava de comer e havia gastado boa parte da sua grana com prostitutas e apostas. Sua advertência recebida do Departamento de Fiscalização Moral da Raça Ariana não havia adiantado de nada, Ernest e todos os cidadãos sabiam que o governo Nazista não se dava ao luxo de sancionar tão rigidamente seus escassos cidadãos, tão necessários para a sobrevivência do III Reich ante aos bilhões de sub-humanos que os cercavam.

Adilson com seus 1,97 e 110 kg estava terminando o trabalho com um adversário no ringue. Era a sua 16º defesa seguida do cinturão colonial dos peso-pesados. Adilson havia cercado seu adversário no corner no início do 4º round, por três vezes o oponente tentou escapar sem sucesso devido aos jabs rápidos de Adilson, antes de ser nocauteado por um direto certeiro do campeão. O desafiante caiu desacordado para fora do ringue em meio aos aplausos da plateia. Ernest assistia a tudo tomando uma caneca de cerveja bem escura. Não tinha apostado, apostas no campeão pagavam pouco por ser ele o franco favorito.

Após a luta, no vestiário, Ernest fora atrás do campeão. Havia tido uma ideia, talvez mirabolante e arriscada, mas quem sabe, ele teria de tentar.

- Grande luta, campeão.

- Obrigado, meu senhor – respondeu Adilson, com a típica etiqueta de submissão dos sub-humanos em relação aos cidadãos arianos.

- Já deve estar sabendo que o grande Willy Schultz estará na colônia daqui a uma semana.

- Sim senhor, soube sim.

- Eu bem acho que poderia vencê-lo.

- Senhor, lutas entre arianos e nós servos são proibidas, senhor.

- Ah, pode dizer, rapaz, ninguém aqui vai lhe punir por isso. Acha que o venceria?

- Senhor, essa sua pergunta… - disse Adilson tentando desconversar.

- Pode dizer, rapaz, só entre nós. O que acha do Willy Schultz?

- Poderia vencê-lo, senhor. Teria problemas com o tamanho dele. Os atletas do circuito europeu são modificados. Mas meu jogo de pernas é melhor e sou mais rápido.

- Tem certeza, rapaz?

- Ele continua sendo só um homem.

- Sim, mas um homem 2,06m e 135kg – respondeu Ernest com um ar de dúvida e indecisão.

- Mas senhor, me perdoe a curiosidade. Por que esse interesse em saber quem venceria.

- Deixa eu te dizer, caro Adilson – disse Ernest tirando o chapéu e sentando do lado do pugilista – bebi ontem com o empresário do grande Willy Schultz, o homem chegou antes para ajeitar o tour do campeão, afirmei ter um garoto muito bom que venceria o campeão mundial se não houvesse os impedimentos legais.

- Você quer que eu lute com ele? Mas seria impossível, essas lutas são proibidas.

- Sim, meu rapaz, mas seria uma luta não oficial.

- Mas por que ele aceitaria senhor? Willy Schultz deve ser um homem muito rico. Os lutadores do circuito europeu ganham uma fortuna por cada luta.

- Sim, ele é milionário, mas não é ele que vai aceitar a luta e sim o empresário.

- Mas por que?

- Porque feri o orgulho dele. Prepare-se, garoto, daqui a um mês você enfrentará o grande Willy Schultz.

Ernest não precisava dar detalhes a Adilson sobre nada, o pugilista era um sub-humano. Ocorre que o orgulho ferido do empresário de Willy se deu em um bar na cidade velha do Rio de Janeiro. Ernest havia limpado o turista alemão em um jogo de Poker, o empresário de nome Jurgen precisou desistir do último desafio de Ernest ou corria o risco de ter de fazer um saque no banco para cobrir as apostas. Na mesma mesa, bebendo juntos, o empresário se ofendeu ao escutar de Ernest que havia um lutador da colônia tão bom que poderia vencer um lutador do circuito principal. Fugir de dois desafios era demais para o empresário ariano que, de pronto, propôs uma luta não oficial entre seu lutador e o de Ernest. Ernest, a princípio duvidou de qualquer possibilidade do confronto acontecer, mas após pensar um pouco, percebeu ali uma oportunidade de ouro.

Fazer com que Adilson entrasse no ringue não era problema. Seu dono devia uma grana para Ernest que no combate contra o gigante ariano quitaria sua dívida e ainda receberia uma parcela de 25% da aposta de Ernest, é claro, se ele vencesse. Ernest acertou a luta com o empresário de Willy que aceitou receber a relação de 1:3 da aposta de 500 mil reishmarks. Para Jurgen a questão era mais de orgulho do que de dinheiro. Para Ernest era uma boa oportunidade, se vencesse ele receberia 1 milhão e meio de reishmarks e ficaria bem. As chances não eram tão boas e, se perdesse, acabaria por torrar quase todo seu patrimônio necessário para seu “trabalho” de agiota. A Luta fora marcada para a última semana de Willy na colônia, após inúmeras entrevistas nos jornais e na TV, ele aceitou a luta que, para ele, era uma quebra da entediante rotina de férias. Um lutador das colônias seria despachado rápido, Willy planejava um nocaute até o segundo round. De qualquer forma, seria uma experiência interessante, ele nunca havia lutado contra um sub-humano antes.

O ringue fora montado no estacionamento do hotel que ficava no centro do Rio. Adilson havia treinado três semanas, após uma de descanso depois de sua ultima luta. Ernest providenciara os melhores anabols da colônia para Adilson que estava em seu máximo. Willy não treinara no tempo que estivera na colônia exceto alguns exercícios e golpes no saco de pancadas um dia antes da luta. Willy estava confiante como qualquer um estaria em sua posição. Não sabia da existência de Adilson até antes de seu empresário tentar lhe convencer do combate. Haviam centenas de bons boxeadores na metrópole, os quais a equipe de Willy estudava ao máximo, simplesmente não sobrava tempo para acompanhar os combates semi-amadores das colônias. Pelo jeito o tal Adilson era um bom lutador para ousar desafiar um pugilista da metrópole, ainda mais um campeão. Willy confiava em seus instintos melhorados em laboratório e na qualidade de seus músculos aprimorados por recombinação genética.

O grupo de telespectadores era pequeno, não passavam de 20 homens. O árbitro era um local, já experiente em lutas nas colônias. A luta seria de 6 rounds. Willy não viera preparado para uma luta e teve de adotar como “cutman” seu próprio empresário que não esperava ter de utilizar os esparadrapos para fechar cortes já que seu lutador era franco favorito. Willy parecia estar animado, adorava lutar e o tal Adilson parecia um oponente fácil, era 10 cm mais baixo e bem mais leve. Seria um peso-pesado padrão sem as técnicas de recombinação genética. A tática proposta pela equipe de Willy era simples: usar de seu tamanho, peso e potência para pressionar o sub-humano e nocauteá-lo o mais rápido possível.

Adilson estava com a sua equipe completa. Estava bastante eufórico, era o combate da sua vida! Nunca estivera perto de um lutador tão completo. Estaria lutando contra o melhor pugilista do mundo! O atual campeão mundial dos pesos-pesados! Era motivo mais que justificado para euforia. A tática a ser adotada por ele e sua equipe seria utilizar da movimentação e agilidade para se esquivar dos golpes do adversário e atacar quando surgisse a oportunidade. Ele evitaria ao máximo trocar golpes de forma franca com o oponente maior e mais forte. Adilson se movimentaria no ringue, se esquivaria e defenderia o maior número possível de golpes.

Sem mais perda de tempo aluta começara. A diferença de tamanho era evidente. Willy começou pressionando já com a clara intenção de conectar golpes curtos. Os cruzados e ganchos do gigante ariano passavam no vazio. Adilson se esquivava e se movimentava rapidamente no ringue. O primeiro round estava ido bem para Adilson até que um cruzado do alemão o atingiu quase em cheio na cabeça. Se não fosse o ombro de Adilson ter amortecido parte do golpe ele teria sido nocauteado. Adilson tratou logo de clinchar seu adversário antes que o mesmo o atingisse outra vez. E assim acabou o primeiro round. Adilson nunca havia sido socado assim na vida, Willy era mesmo muito forte.

Willy pensou que seria um passeio no parque, uma brincadeira para passar o tédio, mas percebeu que havia subestimado o adversário. O sub-humano tinha queixo e se movimentava muito bem no ringue. O treinador de Willy o aconselhou a levar o embate a sério para não passar vergonha. No início do segundo round Willy tentou cercar o adversário, porém, de maneira elusiva, Adilson evitava ser encurralado. Adilson então fez seu primeiro contra-ataque, um cruzado de esquerda logo após se esquivar de um direto do gigante alemão. O golpe pegou em cheio no rosto e balançou Willy que recuou pela primeira vez, fechando bem a guarda. Adilson aproveitou o momento para lançar uma combinação de cruzados e ganchos que ficaram na guarda do alemão. Willy estava nas cordas, havia recuado de forma inteligente e, por fim, clinchou o sub-humano, segurando o adversário com força e impedindo que ele desferisse mais golpes. O juiz separou o clinch que havia parado toda a ação, pouco antes do fim do round.

O terceiro, quarto e quinto round se desenrolaram com um Willy cauteloso, lançando menos golpes e se preocupando mais com a defesa. Adilson se esquivava e mantinha sua tática de movimento, lançava um ou outro golpe de contra-ataque que não surtiam tanto efeito contra o agora cauteloso gigante alemão. No intervalo para o sexto e último round o treinador de Willy estava furioso, com a cara gorduxa vermelha de raiva ao ver seu lutador sendo frustrado por um sub-humano. O treinador de Willy exigiu que ele pressionasse o máximo possível aquele último round pois se a luta chegasse ao fim com o oponente de pé ele poderia perder por pontos.

No sexto e último round, Willy pressionou o máximo que pode, sua imprudência desesperada fazia com que fosse contra-atacado pelo mais leve e ágil Adilson que se movimentava e atacava nas brechas dos ferozes ataques do alemão. A imprudência de Willy custou caro quando um direto de Adilson abriu um corte em seu cílio. Faltando 20 segundos para o fim do embate, Adilson já se via como vencedor, na decisão óbvia a ser dada pelo juiz, até que cometeu um erro: Willy pareceu lançar outro dos seus poderosos jabs e Adilson já se movimentou esquivando para baixo, a fim de contra-atacar, foi quando o inesperado aconteceu, o jab do enorme ariano na verdade era um cruzado que atingiu Adilson do lado da cabeça, que foi à lona desacordado. O juiz começou a contagem mas nem chegou a terminar ao ver que Adilson estava completamente apagado no chão.

Ernest que já planejava o que fazer com a pequena fortuna que ganharia ficou estarrecido com a cena. Não acreditava. Estava tão perto da vitória e um piscar de olhos depois tão próximo da pobreza. O empresário de Willy ria de orelha a orelha e subiu no ringue improvisado para cumprimentar seu lutador. Willy por sua vez tinha um ar de alívio ao vencer o subestimado adversário. Quase perdera uma luta para um sub-humano! Adilson acordou meia hora depois, no canto do estacionamento, em um colchão, com sua equipe o olhando preocupada.

Ernest pagou ao arrogante empresário europeu a quantia apostada. Estaria fodido daqui pra frente. Alcoólatra, sem dinheiro para agiotagem, sem dinheiro para as putas, preguiçoso demais para trabalhar na burocracia do Reich, um filho da puta. Acendeu um cigarro no caminho para seu Jaguar estacionado em uma das escuras ruas adjacentes ao hotel. Afundou-se no confortável banco de couro, puxou fundo a fumaça e soltou lentamente. Cravo, a fumaça tinha gosto de cravo.