O Rádio

O RÁDIO

24/04/17 Roman Kane

Como sempre aos domingos Walter acordava de manhã e cumpria o seu ritual. Em silêncio colocava água para ferver, em seguida se dirigia ao banheiro, levantava a tampa do vaso sanitário e urinava com cuidado para não deixar respingos, pois a esposa dizia que ele era um porcalhão e quando começava a falar parecia uma metralhadora, para evitar esses contratempos, procurava não aborrecê-la, pois quaisquer coisas, já era motivo para implicar com ele. De fato, a mulher era uma casca de ferida, sempre brava e mal-humorada. Escovava os dentes, lavava o rosto com sabonete, se olhava no espelho, depois passava os dedos pelos cabelos para ajeita-los. Nesse meio tempo a água já estava fervendo pronta para fazer o café. Quando a esposa se levantava, a mesa já estava posta com pão caseiro, manteiga, queijo, leite e café. Walter era um bom marido, ou melhor, era resignado com a vida. “O que é ruim pode piorar”- Pensava.

- Liga o rádio pra gente ouvir o pastor Cleverson! Pediu a esposa.

No rádio o pastor dizia, dizia não, berrava:

- Vocês pecadores vão para o inferno, o fim está próximo e quem não seguir a palavra irmãos, estará condenado a vagar pelos caminhos da perdição.

- Se arrependa e cumpra com sua obrigação colaborando com a obra de Deus.

- Faça sua doação pelo bem da sua alma.

- Aceitamos cheques e cartões de crédito.

- Aleluia irmãos, aleluia.

Em seguida um coro começava a entoar aqueles hinos.

De uns tempos para cá, Walter percebeu que a esposa só falava da igreja neopentecostal “VENHA SE SALVAR” e do pastor Cleverson. Havia se convertido e pregava com fervor, parecia que estava meio louca e fanática. Walter nunca foi religioso e a esposa agora vivia dizendo que ele era um pecador, que precisava se redimir e doar parte do dinheiro da venda do leite para o pastor. Walter era dono de um pequeno sítio, onde criava umas vacas leiteiras e a produção de leite era o seu sustento. Era uma vida dura de trabalho pesado, levantava de madrugada, precisamente ás quatro horas para tirar o leite das vacas, e entregar ao caminhão do laticínio que passava ás seis.

- Acorda pra vida mulher! Esse pastor é um pilantra só quer tirar dinheiro das pessoas!

- Você que é um infiel! Por isso somos castigados!

Haviam-se casados jovens, mas nunca conseguiram ter filhos. Foram a vários médicos, fizeram tratamento, mas foi tudo em vão. O Dr. Ambrósio médico da família, afirmou:

- Vocês nunca poderão ter filhos.

Aos poucos foram se conformando e a vida foi seguindo o seu curso e a esposa foi se tornando mais dura, implicante, foi perdendo a doçura e os olhos ficando frios e opacos, em poucos anos ela era uma mulher amarga, já não sorria mais, embora ainda jovem, aparentava um aspecto de mulher velha.

A maternidade para uma mulher é como um rio que corre alegre para o mar, atravessando matas, serras e montanhas, cumprindo o seu destino natural na criação, se isso não ocorre à mulher vai ficando parecida com um deserto sem vida, onde nada brota ou floresce é tudo seco e árido.O ressentimento, a culpa, a mágoa, isso tudo era traduzido no silêncio na mesa de jantar, onde somente o tilintar dos talheres nos pratos eram ouvidos.

Foi num desses dias vazios em que Walter saia para o trabalho, resolver assuntos no vilarejo, que tudo começou. Estela, a esposa, esse era o nome dela, ligou o rádio, nas ondas AM, onde uma infinidade de emissoras transmitia programas religiosos, principalmente os evangélicos neopentecostais. Esses programas se proliferaram de tal maneira, parecendo uma praga. Em disputa os rebanhos de gente pobre e humilde, que trabalha duro e ganha um parco salário com o suor do seu rosto e também os “perdidos” na vida, drogados, alcoólatras, prostitutas e homossexuais, gente marginalizada sem fé, sem esperança. No discurso sempre a mesma temática apocalíptica, o fim está próximo, arrependas-te ou você irá para o inferno e sempre prometendo curas milagrosas e no final a contribuição em dinheiro, cheque ou cartão.

- O diabo irmão! O diabo está solto no mundo e o dia do juízo final está próximo! Muito próximo. Aleluia, aleluia.

- Agora uma carta da nossa irmã Clotilde. Clotilde queria ser mãe e não conseguia. (Clotilde na verdade era uma velha conhecida do pastor). Fizemos um ciclo de orações e ela passou a tomar água da fertilidade durante quarenta dias e hoje ela nos escreve agradecendo, dizendo que deu a luz. Ela cumpriu fielmente o que foi pedido, fez a sua doação para a igreja e deus á abençoou. Quando Estela ouviu esse relato foi como um raio em sua cabeça. Uma noite criou coragem e disse a Walter que iria numa igreja. Arrumou-se e lá foi de carroça rumo ao povoado onde ficava a tal igreja. Chegando lá conheceu o pastor Cleverson, que foi muito receptivo e simpático.

- Seja bem vinda irmã! O que a traz aqui nessa casa de deus?

- Eu quero ser mãe! Eu e meu marido já tentamos de tudo e nada deu certo! Ouvi no programa da rádio que isso é possível aqui.

- Sim irmã, basta seguir todos os passos que a igreja recomenda e o senhor te abençoará. Os passos da igreja não é preciso ser inteligente para entender que significava doação, ou melhor, dinheiro.

- O que devo fazer pastor?

- A senhora vai tomar um copo de“água da fertilidade” durante quarenta dias e irá fazer uma contribuição para a igreja para cada copo d água e logo a senhora será mãe.

E assim foi durante quarenta dias a mulher mudou da água pro vinho, rejuvenesceu, se arrumou, ficou bonita e seduziu o marido como nunca mais havia feito. Vivia alegre e cantava hinos de louvor. O marido achou aquilo muito bom e pensou: “Aconteceu um milagre, essa mulher renasceu”.

Naquelas tardes quentes de verão, infestada pelo fretenir das cigarras, que invade a nossa alma causando uma preguiçosa melancolia, deixando-nos apáticos e sem disposição, para enfrentar a labuta do dia a dia. Dona Estela, encheu-se de coragem, pegou a trouxa de roupa suja e dirigiu-se ao tanque. Ligou o rádio que era a sua única companhia, nos afazeres da casa. Ouvia músicas e se informava das notícias do mundo. Assim que colocou as roupas, no varal, o rádio começou a sofrer umas interferências e a emitir um zumbido esquisito. Reparou ao longe na estrada de terra, um automóvel escuro, se aproximando da porteira do sítio. Um homem desceu e abriu a porteira e o carro passou, entrou novamente no carro, que veio pelo trilho e parou na entrada da varanda. Desceram três homens e uma mulher.

- Olá dona! Boa tarde!

Disse o mais velho, com um sotaque estrangeiro, carregado.

- Boa tarde! Seu moço!

Respondeu Estela.

- Somos viajantes e estamos um pouco perdidos! Será que a dona podia nos dar um pouco d’água?

- Sim! Vocês podem tomar água, ali no pote e depois vão embora! Respondeu Estela desconfiada.

- Obrigado!

Entraram pela varanda e dirigiram-se ao pote d’água. O rádio estava emitindo aqueles zumbidos e interferências. Estela desligou o rádio e o silêncio intermitente com as cigarras ficou no ar. Foi nesse instante que reparou naquelas figuras, vestidas de preto e o contraste das suas peles brancas e opacas, sem vida, parecidas com pele de borracha. Sentiu um certo temor e procurou ficar calma. O mais velho pegou a caneca de alumínio e encheu de água, virou-se e a levou a boca de lábios finos, ao mesmo tempo, tirou os óculos escuros e fitou Estela com um par de olhos amarelados, olhos magnéticos que a fizeram estremecer e sentir uma espécie de vertigem, foi desfalecendo, não chegou a cair ao chão, pois um dos elementos a amparou com o braço.

Quando voltou a si, estava nua, amarrada numa estranha mesa, como se fosse fazer um exame papanicolau. Ouvia-os conversando numa língua alienígena e o curioso é que conseguia compreende-los perfeitamente. Sentiu quando introduziram um aparelho na sua vagina. Novamente perdeu os sentidos. Quando acordou estava deitada na sua cama em seu quarto completamente vestida. O rádio tocava uma antiga canção. Sentia-se confusa e com uma leve dor de cabeça. Não se lembrava de quase nada.

- Acho que dormi e tive uns sonhos esquisitos!

Logo na semana seguinte descobriu que estava grávida. Foi à maior felicidade. Walter sentiu-se extremamente orgulhoso e até passou a colaborar com a igreja. Comemoraram com um almoço na companhia do pastor Cleverson que sempre foi um picareta enganador, que cinicamente dizia:

- A fé remove montanhas!

Mas ele sabia que sua água, era só água mineral. Com isso sua fama crescia e sua água milagrosa era vendida por toda a região.

Quando o filho de Walter e Estela nasceu, todos acharam a criança estranha. Sua pele era branca e opaca, parecendo de borracha e seus olhos amarelados, mas todos diziam hipocritamente:

- Nossa que belezinha!

O tempo foi passando e a criança era o maior orgulho do casal. Na escola os professores ficavam admirados com a sua inteligência, muito acima da média e se perguntavam:

- Como pode uma criança ter esse conhecimento do sistema solar?

Num desses dias iguais a tantos outros, dona Estela estava costurando uma colcha de retalhos, entretida cantarolava junto ao rádio ligado, uma dessas novas canções gospel de sucesso, quando o rádio começou a sofrer uma interferência e a emitir uns esquisitos zumbidos. Levantou-se e foi até o aparelho e tentou sintonizar a estação, percebeu nos zumbidos uma estranha voz estrangeira, numa língua alienígena e o curioso é que entendia o que se falava. Sentiu um nó no peito e correu para a porta da cozinha que dava para a varanda onde se via a longa estrada de terra e a porteira do sitio. O que viu a deixou em pânico e gritou:

- Não façam isso! Não levem o meu filho!

O garoto vinha a pé da escola, quando um carro escuro parou e homens de terno preto o levaram para dentro do carro, que sumiu na poeira da estrada. Foi a última vez que dona Estela viu o filho. A partir desse dia foi ficando paranóica e dizia coisas desconexas e sem fundamento. Dizia que o filho fora levado por extraterrestres. A polícia procurou por vários meses e nunca achou nenhum vestígio do garoto até hoje.

Certas noites Estela acorda gritando em pânico:

- Socorro! Estão levando meu filho, para as estrelas... São eles!

Dizem que endoidou. Perdeu o juízo.

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