Pena de Vida

Eu caminhava por aqueles campos verdejantes. De repente senti que poderia correr, e comecei a correr! O vento me refrescando o rosto, o cheiro de mato em todo o redor. De repente pensei: "posso voar?" E, para minha surpresa, eu podia! Comecei a voar sobre aquele campo verdejante! Um alerta irracional me lembrava o tempo todo: "Pare!!! Você não voa!!! Vai cair!!!", mas de alguma forma os ignorava e continuava voando. Era real demais para eu duvidar da experiência! Até me lembrar de uma ideia antiga, registrada em minha memória: "Sonhos lúcidos!!! Você está tendo um sonho lúcido!!! Pode fazer o que quiser nele, mas ele não é real!" E neste exato momento comecei a cair. Meu coração em disparada, mas nunca atingi o chão! Ao contrário, despertei sobressaltado, numa cama de um hospital, num quarto completamente esterelizado...

- Enfim acordou! - ouvi de um enfermeiro. Ou enfermeira? Era incapaz de decidir. Um ser de brancura sobrenatural, de gênero completamente indefinível!

- Por quanto tempo apaguei?

- Apagou? Não não, meu caro! Você morreu! Mas na hora errada, por isso te trouxemos de volta...

Ergui a mão direita defronte meus olhos. Límpida, perfeita, como se nunca tivesse sido utilizada.

- Não me lembro de ter morrido...

- Lógico que não, ninguém se lembra. Ainda não conseguimos registrar estes momentos finais na memória dos simulacros cibernéticos, continua sendo uma experiência inteiramente particular, individual...

- Mas lembro que... Sim, meu Dia da Saudade! Lembro dele!

- É certo que sim!

- Eu decidi isto! Estava plenamente consciente do que queria!!

- Não consultou seus familiares, seus amigos... Eles nunca concordaram com tua decisão.

- O Codex de Respeito à Vontade Egoística me garante este direito!

- Foi derrubado pouco depois de sua morte...

- Não pode ser retroativo!

- Bom... este era sim! E nos deu o direito de te trazer de volta.

Trazer de volta? Olhei novamente minha mão, perfeitamente constituída. Claramente não era minha mão original, com cicatrizes, memórias inquestionáveis de individualidade, claramente visíveis.

- Este corpo não é o meu! Se parece muito comigo, mas não é meu. É tão... novo! Não gasto...

- Certamente que é, pois trata-se de um clone.

- Eu não aprovei isto!

- O novo Código Cósmico da Longevidade dispensa aprovações individuais. A aprovação das pessoas de seu entorno já são o bastante para legitimar a ressurreição.

- Não podem passar sobre mim, desconsiderar aquilo que eu quero!

- Lamento te dizer que podem sim! O mundo está diferente hoje, meu caro! E a coletividade pode decidir que mentes com características particulares, e este é o seu caso, devem sim ser preservadas e continuarem existindo (ou voltarem a existir, como é seu caso) se isto represente potencialmente um avanço substancial no conhecimento da humanidade.

Nunca imaginei ter qualquer tipo de particularidade, e perguntei:

- O que eu tenho de especial?

O enfermeiro (ou enfermeira, eu continuava incapaz de descobrir...) responde:

- Então, este é o tipo de pergunta que sou incapaz de te responder. Mas logo o doutor vem falar contigo! - anotou alguns registros nos instrumentos ao lado de minha cama, retirou rejeitos (certamente eu estava impossibilitado ainda de controlar algumas funções corporais básicas, como defecção e micção) e saiu pela porta do quarto, deixando comigo interrogações gigantescas.

Olhando em torno, era impossível saber quanto tempo havia se passado. 10 anos? 100 anos? 1000 anos? Aparentemente quartos de hospitais eram sempre iguais, a mesma brancura inexpressiva das paredes, aparelhos emitindo beeps, agulhas enfiadas nos braços e pernas... "Não devo estar muito no futuro", pensei, "pois ainda não inventaram nada menos repugnante que agulhas para acessarem nossas vias circulatórias".

"Que sede danada...", pensei, e logo em seguida um braço branco, indefinível, de formato amorfo, apareceu à minha frente com um copo de água. Seja lá em que época estivesse, a tecnologia já era capaz de ler a mente das pessoas, e entender seus desejos. Engoli todo o conteúdo do copo em três goles gigantescos, como se não bebesse a séculos. E, talvez, isto fosse mesmo a mais absoluta verdade...

Reconheci Ella imediatamente à porta, acompanhada daquele indivíduo desconhecido, vestindo um jaleco branco. Lógico que me lembrei dela! Conexões sinápticas do cérebro original fielmente reproduzidos no meu organismo clonado.

- Ella? - para confundir ainda mais, ela parecia um pouco mais jovem de como me lembrava...

- Perdão, meu amor! Mas... não consegui te perder! Nunca aceitei sua decisão.

- Mas era MINHA DECISÃO! Soberana!

- As leis mudaram. Me perdoe, mas me aproveitei disto. Te queria de novo, para mim. Me perdoe o egoísmo...

- Mas...

- Ainda te amo!

Pensei um tempo sobre isto. Enfim conclui.

- Ella, este não sou eu! É uma cópia, um organismo clonado! Eu posso ainda achar que sou eu, tenho minhas memórias, experiências, convicções, mas... EU morri! Decidi isto! Imagino que eu tenha direitos autorais sobre o conteúdo de minha mente, não é mesmo? - a esta altura já estava totalmente revoltado por ter minhas decisões completamente ignoradas... - OK, não posso decidir nada sobre meu clone, minha cópia genética, considerada há séculos Patrimônio da Humanidade pela possibilidade de ter desenvolvido mutações inéditas. Mas... minha mente é minha, não é? Ninguém pode copiá-la sem minha autorização expressa!

- Isto mudou, querido! Se possui variantes inéditas, a decisão pode ser coletiva.

- Que variantes inéditas são estas?

Como o enfermeiro, Ella também se calou.

- Por favor, alguém me responda!

Foi a deixa para o indivíduo de jaleco branco se apresentar.

- Por favor, não julgue mal sua companheira! Te explico tudo!

- Quem é você?

- Doutor Clarck, seu ressuscitador.

- Meu o quê?

- Fique calmo, por favor! Tudo será esclarecido!

- Quanto tempo se passou?

- Não é o momento de saber isto, senhor...

- QUANTO TEMPO se passou! - berrei com mais insistência.

O médico olha para Ella, e obtendo seu consentimento, finalmente revela.

- Você morreu fazem 10 mil anos , e sua mente foi preservada num cubo holográfico, inalterada, e reintroduzida no cérebro de seu clone, cujo DNA também fôra preservado no mesmo cubo holográfico...

Dez mil anos!!! Era uma informação difícil de ser digerida!!

- Eu sinto... caramba, é difícil explicar!!! Pareço ser eu, tenho minhas lembranças, realmente acredito que sou eu mesmo! Mas... esse corpo novo, sem as cicatrizes todas que adquiri em vida...

- Está num clone. Este tipo de informação não é preservada geneticamente...

- Lembro do que vivi...

- Claro que sim!! Implantamos estas lembranças, copiamos de sua IA.

- Mas... não sei explicar, não sinto que sou eu mesmo, apesar de todas estas evidências.

- Isto é irrelevante.

- Irrelevante?

- Importante é seus familiares, amigos, pessoas de seu convívio, se convencerem de que você é você.

- O que eu mesmo sinto, em meu interior, não é importante?

- Hoje em dia não, meu caro! Sei que, com a mentalidade de 100 séculos atrás, vai ser difícil se acostumar com isto. Mas você acaba se acostumando com a ideia.

- Ella, ainda é você, depois de 10 mil anos?

- Não, meu amor! Também tive meu dia da saudade! MEUS dias da saudade na verdade, morri umas 5 vezes. Entendi completamente sua decisão naquela época.

- Você é um clone do clone do clone do clone...

- Tanto faz, querido! Hoje acreditamos que a matéria nem é tão relevante assim! É só um veículo, descartável e copiável...

- Então... existe continuidade depois da morte?

- Acredita que ainda não sabemos responder isto? É um assunto difícil de tratar...

- Você está aqui, eu estou aqui...

- Não sabemos se, naturalmente, existe continuidade da vida depois da morte. Mas nós a criamos! Se não existia, passou a existir como criação nossa!

Era informação demais para que eu pudesse absorver. Mas Ella continuou...

- Inicialmente aprendemos a criar simulacros cibernéticos dos entes queridos, que se decidiam por extinguir a própria existência. Simulações perfeitas, que enganavam muito bem! E que foram ficando cada vez mais perfeitas... Aprendíamos a copiar cada vez melhor a mente do ente querido, que se decidia por interromper sua própria existência escolhendo seu Dia da Saudade.

- Crescimento exponencial da capacidade de armazenamento e processamento, é o que imagino.

- Sim, logo chegamos a este patamar! Mentes humanas perfeitamente copiadas e simuladas artificialmente, até que pensamos: seria possível as colocarmos de volta num substrato orgânico, uma cópia de seus próprios corpos? Foi nesta época que começamos a ressuscitar as pessoas mortas.

- Eu não queria isto! Declarei expressamente que desejava que fosse o fim...

- Me desculpe, querido! Sentia sua falta, te queria de volta! E não pensei duas vezes quando, 5000 anos atrás, esta decisão passou a ser legalmente coletiva.

Sim, como podem imaginar, me sentia traído! Minha decisão de deixar de existir desrespeitada por terceiros. Pior ainda, pela pessoa que mais amei na vida!

- Quero apagar de novo.

- Receio que não possa fazer isto, senhor!

- Como não posso?

- Hoje em dia, isto é ilegal! Ninguém pode decidir se suicidar...

- E se eu o fizer?

- Será punido.

- Punido? Eu morrerei de novo, como podem me punir?

- Você terá uma ressuscitação forçada.

- Ressuscitação forçada?

- Sim, contra sua vontade!

- Eu me mato de novo!

- Te ressuscitamos de novo. E isto vai se repetir, de novo, de novo, e de novo, até que o senhor entenda que esta decisão não é sua!

- Eu não decido se quero parar de existir?

- Tendo uma característica peculiar como a sua, não!

- E, de uma vez por todas, que característica é esta que me condena a existir para sempre?

O doutor e Ella trocam olhares, e saem do quarto. Não seria daquela vez que conseguiria uma resposta para isto. Será que algum dia eu conseguiria?

(continua???)