O Canto da Flauta Negra

Dezenas de navios em mares com neblina intensa entram em combate ao anoitecer, e o Capitão Boaz, lorde da família real "Flautas Negras’’, lidera a frota de navios. Seu navio, um pouco distante do combate, se prepara para um confronto direto. O Capitão aos gritos com os oficiais e soldados da embarcação incentiva a luta em nome da bandeira vermelha e preta da sua terra.

Duas embarcações, inimigas uma atrás da outra, entram na neblina, em direção ao do Capitão Boaz. Muito próximos alcançam o navio Polvo Negro de Boaz e se alinham lentamente. A tripulação silencia diante do confronto, como forma de estratégia. Então grita o Capitão Boaz:

- À terra sagrada! Lutem pelas suas famílias, soldados! Ao seu Rei! Somos Os Polvos Negros de Olhos Vermelhos! Afundem esses navios! Fogo... sem cessar! Fogo!

Os navios se bombardeiam em tiros cruzados. Estilhaços de madeiras voam e caem ao mar. Os guerreiros se confrontam entre escudos e espadas, alguns com armaduras outros não. Os revólveres, uma inovação bélica, estão apenas entre os comandantes; com um ataque mais rápido são disparados. A tripulação de um navio invade o outro, e atinge os homens que soltam gritos apavorantes.

Em meio a explosões entre as neblinas, Capitão Boaz observa que está vencendo e, retorna ao timão para conduzir o navio. Mas uma bomba de canhão passa na sua frente. O vácuo faz o Capitão voar para trás em longa distância; cai e bate a cabeça. Desmaia com sua flauta pendurada ao peito. Os dois navios oponentes entram em chamas e devagar afundam, sem cessar os tiros dos seus canhões mortais ao navio de Boaz. O navio do capitão é tragicamente atingido e começa afundar. Um marujo vai até o capitão, olha para um lado e outro e pensa em retirá-lo do navio. Olha para a bela flauta negra pendurada ao peito do seu comandante e então estoura o cordão do pescoço. E sai andando no tumulto da batalha.

Horas depois, o Capitão Boaz acorda na praia desorientado, sente a cabeça ferida, coloca a mão no peito e não sente sua flauta. Cenas do combate vêm em sua mente e sua cabeça dói.

- Meus marinheiros, minha frota de navios, será que não sobreviveu ninguém?

Sem perceber, ao seu lado, o Tenente e melhor amigo Noah com ferimentos, ajuda o Capitão a se levantar e lhe diz.

- Sobrevivemos, Capitão, após eu nadar muito com o senhor. Apenas nós conseguimos nos salvar.

Procuram um abrigo e debaixo de uma pedra, sentam-se com dificuldades. Molhados no frio da noite, ascendem uma fogueira e, ainda muito exaustos, começam a conversar.

- Como eu vim parar nessa praia, Tenente?

- Eu e dois marinheiros jogamos o senhor desacordado na água. Quando pulei do navio, um tiro de canhão atingiu os outros marinheiros que ajudavam e me feriu. Então sozinho eu trouxe o senhor para essa praia.

- Muito obrigado pela lealdade, Tenente.

- Sempre à sua ordem, meu Capitão.

- Minha flauta não está pendurada ao meu peito. O que aconteceu, Tenente?

- Eu vi de longe o momento que o marinheiro roubou do senhor, mas não consegui chegar a tempo para evitar.

- Sério, e como aconteceu?

- O espertalhão se assustou assim que fui atrás dele. Ele partiu com a espada para cima de mim. Dei a ele dois golpes mortais com minha espada. Peguei a bolsa onde estava a flauta e joguei o corpo dele no mar.

- Então conseguiu a flauta de volta, Tenente?

- Sim, Capitão, resgatei a flauta. Eu lhe entrego com honra.

- Você, meu amigo Tenente, só me prova força e lealdade.

- Obrigado, Capitão. Devemos ficar atentos, pois estamos em território inimigo.

- Sim! A volta para casa é quase impossível. A demanda de soldados é enorme até a estrada principal de volta ao castelo. Precisamos de uma estratégia que não falhe.

- Exatamente.

- Capitão, o senhor precisa voltar ao castelo! Sua esposa corre risco de vida. Chegou uma carta no acampamento antes do combate dizendo que seu filho havia nascido e o parto da sua esposa foi difícil. Ela está de frente com a morte. Seu pai não autorizou que soubesse para se focar na batalha tão importante para o nosso povo. Não vou conseguir ajudá-lo, Capitão.

- Como não, meu amigo?

- Estou com um ferimento grande na perna. Após ter nadado bastante, pelo esforço até a praia, o corte abriu muito. Estou perdendo muito sangue.

- Eu levo você nas costas, Tenente, e improvisamos algo para levar.

- Capitão eu vou atrapalhar o desafio que o senhor tem pela frente. Acho que irei partir onde Deus me espera. E morrerei agradecendo por ter lutado pelo nosso povo e ao seu lado amigo. É a grande honra da minha vida! Daqui a algumas horas isso será inevitável, o senhor sabe bem. Precisa partir sem mim.

Noah comenta que a flauta é um instrumento diferente e que o pai de Boaz já dizia. Mas nunca foram a fundo nas conversas. O Capitão passa os dedos na flauta e a admira. Olha o amigo que agora dorme ao lado da fogueira. Em noite fria, lançados à piedade de Deus. Ilumina a fogueira refletindo sua luz nas águas do mar. Dormem.

Depois de algum tempo, acordam. Noah quase não se move e pede para que Boaz parta com urgência. O Capitão agradece ao amigo como alguém muito leal e lamenta por ter que deixá-lo, entende que não há outra maneira. Em silêncio, Boaz parte com o semblante diferente, anda lentamente se segurando para não voltar até o amigo que aos poucos começa a partir.

O Capitão caminha em terras inimigas na única estrada que leva para o seu castelo. Tenta desvendar algum mito que possa ter a bela flauta negra. Relembra alguns momentos com o pai, tentando achar pistas, mas nenhuma lembrança parece ser útil. Sente suas mãos esquentarem muito em pleno frio, passa uma mão na outra e em seu rosto. Em passos firmes na estrada longa e reta no horizonte muito distante, observa algo com muita atenção se movimentando. Algo se aproxima com lentidão. Mas Boaz logo percebe se tratar do que mais temia. Um grande exército inimigo marcha ao sul para defender a costa litorânea dos navios da família dos Flautas Negras.

Avançam com cavalos, lanças altas e muitas bandeiras tremulam com o símbolo de uma família inimiga. Soldados com armaduras elmos, escudos robustos, marcham em cadência demonstrando sua disciplina. Infantaria posicionada ao meio, cavalaria nas laterais em posição de proteção.

Boaz pensa que a única forma é fugir dali. Correr para esquerda ou direita? Mas não há uma só árvore, pedra ou monte para um esconderijo. Se voltar à praia acontece o mesmo e será questão de tempo para ser pego. Caso corra para fora da estrada, é certeza que cavaleiros irão atrás. Imaginarão ser inimigo ou um espião. Como o campo é muito aberto não vencerá a rapidez e agilidade dos cavalos. Sem saída? Passar despercebido como um músico pelo exército, tocando a flauta? Se reconhecido, Boaz será um prisioneiro importante para o inimigo, pois é um lorde, Capitão, e príncipe de um reino poderoso. Apesar de não o conhecerem bem é uma chance.

O Capitão se dirige à esquerda da estrada para abrir passagem ao exército próximo. Decide então se passar por um músico, tem conhecimento em tocar flauta, mas imagina que poderia ser um problema e ser reconhecido. Lembra então que é o único de sua família que tem tal instrumento e não faria diferença em tocar. Dificilmente será até mesmo visto.

O exército está cada vez mais próximo. Os pequeninos orifícios da flauta chamam atenção de Boaz, que começa a tocar pela primeira vez em situação de perigo. Sons sublimes saem da bela flauta, tão calma a música. E assim ele se depara longe, distante dali. Vêm à mente lembranças da encantadora esposa de face delicada, traços finos, cabelos longos e negros de corpo esbelto. Juntos caminham nos bosques do castelo dos Flautas se deparando com os perfumes de centenas de flores. Compartilham tamanha felicidade. Longe de tudo, bem distante em outras emoções. Boaz de olhos fechados e suas mãos mais quentes como nunca. Em passos leves, caminha a frente do inimigo.

O exército visualiza o Capitão. Ao comando dos líderes param de marchar. Um comandante a cavalo pede para o então músico parar. Boaz não ouve. Dá alguns passos e se conduz para frente do inimigo. Os cavalos se agitam de um lado e para outro. E longe dali um uivo de um lobo soa, no lugar plano, ecoando longe. Os comandantes não entendem, balançam a cabeça e um deles diz.

-Manda flecha no louco!

Os trinta primeiros soldados das fileiras da frente abaixam como um raio, atrás deles quinze arqueiros miram no peito de Boaz. O mesmo comandante olha firme para o Capitão. Levanta o braço direito e dá o comando. As flechas rasgam o ar em direção ao peito de Boaz. Mas em uma fração de segundo, fumaças saem dos orifícios da flauta e giram, formando um escudo preto redondo de aço. As flechas batem no escudo e caem ao som lúdico da flauta.

Os comandantes, abismados com o que observam, dão comando a uma fração menor da tropa, que correm em direção ao Capitão para aniquilá-lo. O escudo se desfaz, deixando rastros de fumaças pelo ar. A terra treme entre Boaz e o exército. Uma fenda profunda se abre na sua frente. Inúmeros cavaleiros que tentam atacar são engolidos pelo enorme buraco.

Sai da fenda um enorme tentáculo grosso e negro numa velocidade absurda. Vai ao alto e desce com rapidez martelando os soldados. Outros oito tentáculos saem da fenda em uma agilidade imensa e buscam o exército pronto a lutar. Os braços negros os arremessam para longe, comandantes perdidos na situação dão ordens para atacar. Em ataques de flechas e lanças as pontas das armas fincam nos tentáculos que se esquivam de golpes. Os Soldados atacam com suas espadas rasgando a carne do animal em cortes profundos e longos. Rasteja alguns tentáculos entre os homens, espirrando nas armaduras pratas seu sangue quente.

Ainda distante do tumulto, Boaz toca uma última nota. Por um instante bem devagar, volta a abrir os olhos lentamente com os vestígios do som lúdico ainda em seu interior. Gritos de dor e vozes pedindo socorro, escuta sem entender todo o cenário em sua volta. Repara alguns cavaleiros e soldados recuando e centenas deles dilacerados e mortos na sua frente.

Então ele se depara com a cabeça do animal que começa a sair da fenda, com seus olhos grandes e avermelhados. As pontas de seus tentáculos enormes se agitam no ar enrolando e desenrolando. Observa o animal lentamente, que se retira o olhando e vai sumindo pelas fendas abertas na estrada de terra.

O Capitão olha para o inimigo massacrado a seus pés. Anda alguns passos, cai de joelhos e se curva. Nota a bela flauta e por um momento, segura firme e coloca o cordão preso a ela no pescoço. Olha para o horizonte aberto, imenso que a longa estrada traz, observa a divisa entre suas terras e a do inimigo. E pergunta a si mesmo: "E se eu não tocasse minha flauta? E se eu tivesse tocado no navio?”

Nota que suas mãos estão frias como sempre foram no inverno. Levanta-se e anda rumo a reencontrá-los.

Helias Sevla
Enviado por Helias Sevla em 12/08/2017
Reeditado em 15/08/2017
Código do texto: T6081678
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