Maculado

Ele estava caído no chão rochoso, sem forças para se levantar. Com sua visão turva, viu então um vulto que se aproximava e obscureceu por um instante a entrada da caverna.

- Tem alguém aí? - Gritou.

- Eu te encontrei - ouviu como resposta. Uma voz feminina, mas imperiosa. Voz de quem estava acostumada a mandar e ser obedecida sem hesitações. Ela ajoelhou-se e tocou brevemente em sua testa.

- Você está ardendo em febre, meu amor. Meus servos vão levá-lo para o castelo. Mas antes, tenho algo para você beber.

Puxou um frasco de cristal de um bolso da túnica verde que vestia, e apoiando a cabeça dele com uma das mãos, fez com bebesse todo o conteúdo. Um calor agradável percorreu todo o corpo dele e seus olhos começaram a ficar pesados.

- Quem é você? - Murmurou ele.

- Sou a sua rainha - ela respondeu docemente.

* * *

Lembrou-se vagamente, muito depois, de ter sido conduzido numa liteira fechada durante um tempo indeterminado, ora subindo, ora descendo. Quando recuperou totalmente os sentidos, estava deitado, nu, sob um edredom de penas de ganso, numa cama enorme coberta por um dossel decorado com serpentes adamascadas.

Sentada numa cadeira de braços ao lado da cama, estava sua salvadora, num brilhante vestido verde. Ela o olhava com ar de amorosa satisfação.

- Então, finalmente acordou, meu amado.

- As minhas roupas... - balbuciou ele.

- Continue deitado! - Comandou ela. - Meus servos logo irão lhe trazer roupas novas, condizentes com seu novo status. E depois lhe será servido o desjejum.

- Aprecio muito a sua hospitalidade, mas... a quanto tempo estou aqui?

- Você dormiu por três dias, desde que o encontramos na caverna, quase morto. Eu lhe ministrei uma poção que o ajudou a recuperar as forças enquanto repousava. Deve estar pronto para se alimentar pelas vias convencionais agora...

Ela abriu um sorriso cativante e ele teve a certeza de que jamais vira mulher mais bela em toda sua vida. A idade era indefinida. Poderia ter entre 30 e 50 anos de idade, mas ele pressentia que isso era uma ilusão e de que ela era muito, muito mais velha do que isso.

- Como devo chamá-la, gentil dama? - Indagou ele.

- Sou conhecida por vários nomes. Dama da Túnica Verde, Rainha do Reino Profundo, Rainha do Submundo... mas para você, eu serei apenas Neris. A sua Neris.

- Rainha do Submundo? - Repetiu ele, incrédulo.

- Sim. E você, Rilian de Nárnia, é o meu príncipe consorte - declarou ela, num tom que não admitia contestação.

* * *

Pensara muitas vezes em fugir do Submundo, mas rapidamente teve que admitir que não sabia como chegar à superfície, e que se tinha alguma esperança em rever a luz do sol, deveria colaborar com os desejos de Neris. Isto não era exatamente um sacrifício, já que ela revelara-se, previsivelmente, como uma grande sedutora.

- Do que se lembra do período imediatamente antes de eu tê-lo encontrado? - Perguntou ela certa noite, em que estavam os dois languidamente entrelaçados, na cama de dossel adamascado.

- Meu cavalo foi morto por uma fera monstruosa... talvez um basilisco... e perdi meus víveres, roupas, tudo. Devo ter sido envenenado durante o combate, pois minhas forças se esvaíram rapidamente, e dei graças por ter localizado aquela caverna onde depois me encontrou.

- Sim, amor meu. Você de fato foi atacado por um basilisco. E se eu houvesse demorado só um pouquinho mais em localizá-lo, você seria um homem morto.

- E, falando nisso, como me encontrou?

- Uma de minhas patrulhas no exterior viu, à distância, a sua luta contra o basilisco. O animal fugiu e você desapareceu. Ordenei que fossem efetuadas buscas para localizar o seu paradeiro, e tivemos êxito.

- Posso então me considerar um homem de sorte, amada.

E sentindo que o momento era propício, acrescentou:

- Talvez esteja na hora de voltarmos à superfície... irmos para Nárnia. Minha mãe morreu há muitos anos, mas quero apresentá-la ao rei, meu pai. Nos casamos em Cair Paravel...

- Nada me faria mais feliz do que entrar em Nárnia ao teu lado, meu amor - disse ela, abraçando-o carinhosamente. - Mas acho que esta viagem terá que aguardar mais alguns meses.

- Por que, amada?

- Porque estou grávida de você, príncipe Rilian - respondeu ela, beijando-o.

* * *

Rilian conformou-se com sua sina de hóspede involuntário e consorte da Rainha do Submundo. Não fosse a impossibilidade de ir à superfície, a vida ali seria até agradável. Mas, enquanto a barriga da rainha crescia, uma suspeita instalou-se em seu peito. Haviam poucas proibições em sua convivência com Neris, mas uma delas era a de que jamais deveria vê-la banhar-se. Era algo que não fazia o menor sentido, já que viam-se nus com frequência e ele era testemunha de que ela possuía um corpo magnífico, sem qualquer deformidade.

E então um dia, tomado pela curiosidade, resolveu enfrentar o tabu e foi espiá-la pelo buraco da fechadura do quarto de banhos. Neris despiu-se, exibindo seu lindo corpo e o ventre com alguns meses de gravidez. Entrou cuidadosamente na grande tina de madeira cheia de água quente, que servia de banheira, e foi então que aconteceu algo absolutamente inesperado: a bela mulher começou a transformar-se numa enorme serpente verde.

Uma serpente verde! A mente de Rilian foi varrida por um turbilhão. Uma gigantesca serpente verde, como aquela que o levara numa busca pelos territórios selvagens além de Nárnia.

Uma enorme serpente verde, como aquela que matara sua mãe!

Rilian deixou escapar um grito de ódio. Ao ouvi-lo, a criatura ergueu-se da tina, o couro escamoso brilhando à luz das velas que iluminavam o quarto. E numa voz roufenha, exclamou:

- Não deveria ter feito isso, príncipe Rilian! Agora terei que puni-lo!

* * *

E desde então, Rilian, príncipe herdeiro de Nárnia, tem sido mantido sob um encantamento que o mantém escravizado pela influência maléfica da Rainha do Submundo. E todas as noites, quando por um breve momento ele recupera a consciência de quem é, e do que lhe sucedeu, a rainha o mantém acorrentado à uma cadeira de prata.

E nestes momentos, ele roga inutilmente que alguém o liberte, em nome de Aslam.

- [20-05-2017]