Ponte Ocaso

– Você não deveria vir aqui – disse ao garoto que se prostrava na outra margem do rio – esse penhasco nos separa em reinos beligerantes.

– Não se preocupe, eu só venho até a margem – o rio, que ali corria, era a fronteira – Pois quero contemplar o pôr do sol – seu objetivo me pareceu simplório demais, ainda que eu mesma estivesse ali com o mesmo propósito – No lugar onde vivo, as construções são tão grandes que nos cegam para a natureza. Então resolvi subir aqui, esperando poder apreciar o fim de um dia.

– Sua linha de pensamento é fascinante – não conseguia esconder o meu sorriso – Há algum tempo, tenho vindo aqui para admirar o crepúsculo – ele pareceu intrigado – longe da avidez cotidiana do burgo, aqui eu sinto saudades de um tempo que nunca existiu.

– Você parece ser bem inteligente. Mas – fez uma longa pausa enquanto olhava o horizonte – o pôr-do-sol aqui é bonito? – sua pergunta foi súbita e seu jeito ingênuo me encantou.

– É maravilhoso – respondi com um sorriso estampado no rosto, e ali ficamos esperando o sol se pôr enquanto conversávamos. Duas crianças de nações inimigas, escondidas, se apaixonando no ocaso, envelhecendo com o tempo, sem nunca poder atravessar o rio que nos distanciava.

– Deve haver um jeito de nos reunir – um dia ele disse enquanto o sol se punha – A vida não seria justa se um amor nascido de algo tão belo não puder ser vivido em sua plenitude.

– As formas possíveis tendem a ser perigosas demais – nesse ponto, ele já sabia que eu era versada em magia, e esperava de mim uma solução – não se deve mexer com as leis da natureza – era o que eu sempre dizia por temer que aquilo que nos unia, acabasse pela nossa imprudência, afinal, nossos reinos ainda estavam em guerra.

– O nosso amor é tão natural quanto o sol que se põe sob nosso olhar, tão natural quanto o luar que ilumina nossas discussões. Mas me contentarei com o te ver todos os dias – suas palavras, ainda que me retrucando, eram doces e me aqueciam o coração – contanto que não haja uma forma de nos aproximar – sua condição me pressionava, pois eu sabia que havia um jeito, embora perigoso.

– Usando os nossos sentimentos é possível – eventualmente eu cedi à sua insistência – com a minha magia eu criarei uma ponte através de uma equação perfeita da carga concentrada de nossos pesares e anseios – o sol já tinha se posto quando eu me dispus a agradá-lo naquele fatídico dia. Ele viera ao meu encontro após uma batalha contra o meu reino, contando-me, em meio a lágrimas, que havia assassinado um de meus conterrâneos.

– O crepúsculo de hoje foi o mais belo de minha vida – ver seu sorriso curto finalmente brotar me encheu de júbilo, embora minha preocupação com suas dores não acabara – a guerra é terrível, eu me odeio pelo que fiz hoje... Pensava que você não me perdoaria – seu temor me tocou profundamente – Eu te amo – foram suas últimas palavras antes de cair no sono ali mesmo, ainda coberto de suor, sangue e lágrimas.

– A magia está pronta – disse enquanto ele vinha, no dia seguinte, ao meu encontro para mais um pôr-do-sol – Passei a noite acordada para desenvolver.

– O que eu precisarei fazer? – perguntou ansioso enquanto a luz rubra do crepúsculo se estendia.

– A magia só pode ser feita com o pôr-do-sol – comecei a executar, o que fez com que a luz do sol nos atravessasse – se os nossos sentimentos forem verdadeiros, a ponte será construída – de repente, a luz se concentrou nas duas margens onde estávamos e aos poucos, uma imensa ponte se construiu, ligando as duas margens. Ele correu pela ponte e nos encontramos no meio, com um abraço apertado, um beijo suave e enfim, nosso amor, ali, estava completo – Eu te amo – foi a primeira vez que me abri com ele.

– De todas as vezes que estive aqui, nenhuma se compara a beleza que hoje aprecio – ele dizia enquanto tocava meu rosto e eu o beijava em meio a risos – Esse momento tão esperado deveria ser eterno.

– Gostaria que fosse – nossa felicidade era imensa – Mas a ponte só durará até a última luz do sol nos tocar, pois essa ponte não deve existir. Nossos reinos ainda são inimigos.

– Já é perfeito para mim – ficamos ali até o momento de nos separar novamente, quando a ponte se desfez, e voltamos nos dias seguintes, para a luz pôr-do-sol refazer a nossa ponte e podermos nos tocar dia após dia. Com o tempo, a ponte já se erguia com a chegada apenas de um de nós, e, o que chegava prematuramente, sempre esperava no meio da ponte com o abraço aconchegante para o outro. Notei que mais e mais vezes, ele me surpreendia por chegar mais cedo, com rosas e plantas medicinais que eu amava, e então decidi, um dia, ir ainda mais cedo com um presente para ele. Uma cítara que ele tanto queria, e arduamente produzi, depois de vê-lo tocar, em uma ocarina, uma ária que dizia ter composto por nós. Nesse dia, enquanto me aproximava, pude ouvir o som da ocarina solfejando nossa ária, e minha alegria crescia enquanto meu coração acelerava esperando vê-lo.

– O que está acontecendo? – toda a minha ansiedade se desfez quando eu cheguei à beira da ponte, estava perplexa e atônita com o que presenciava – Você não deveria ter feito isso – minha decepção era evidente, e toda minha alegria se transformara em tristeza e ira, mas mais que isso, o medo crescia no meu coração.

– Me desculpe – foram suas primeiras palavras após se desprender do beijo e abraço da garota que o acompanhava no centro da ponte – eu te amo – ele veio se aproximando – queria ter contado isso de outra forma – a garota ficou parada no meio da ponte enquanto eu era incapaz de me mover – mas preciso me casar e ter filhos no meu país

– suas palavras já não me alcançavam mais.

– Saia daí imediatamente – bradei estupefata quando consegui sair do transe.

– Perdoe-me, por favor – naquele momento, meus sentimentos já não eram mais importantes, o medo tomara conta do meu coração, pois sabia o que aconteceria.

– A ponte está se rompendo – clamei chorando ao ver a ponte se desfazer com o fim dos sentimentos que a mantinha – Fuja!

– Eu sempre vou te amar – ele saiu correndo para salvar sua nova garota, mas quando segurou o braço dela, a ponte se desfez das duas margens, sendo gradativamente destruída até chegar aos seus pés. Ambos caíram abraçados, e chorando, e lutando, e gritando, foram afogados e arrastados pela forte correnteza do rio que sempre nos separara. Aquele amor ao pôr-do-sol se findou como todo crepúsculo ao iniciar as trevas da noite, restando somente suas últimas palavras para mim.

Mateus César e Caroline (Creepy Susie)
Enviado por Mateus César em 19/05/2017
Reeditado em 11/07/2017
Código do texto: T6003446
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