Feito gente

Há muito tempo não escrevo, mas hoje meu amigo me despertou do sono que muito me perturbava. Tenho muito orgulho de nossa amizade. E sei que ele também se enche de felicidade quando me vê. Ele é aquele tipo de amigo abusado que mora na nossa casa sem pagar o aluguel. Anda por cima dos moveis, deita na nossa cama, fica de chamego com nossa namorada e se deixar a comida marcando bobeira ele come e tira uma de não foi eu.

O cara é um liso, não trabalha, tira uma de ficar pela rua de bobeira o dia todo e durante a noite também. Outro dia acordei com ele batendo na porta de casa em plena madrugada. Minha vontade foi de pegar ele pelo pescoço e estrangular. Quando abri a porta ele estava sentado na calçada com cara de quem não fez nada errado. Algumas pessoas dizem que eu o acostumei errado, mas sabe, ele não mexe com ninguém, brinca com todos que brincam com ele e ri um sorriso tão gostoso. Minha vida seria muito triste se ele não estivesse aqui por casa para me fazer rir, chorar e ficar com raiva também, muita raiva. Nossa! Raiva, raiva, raiva e depois felicidade por ele existir. Não sei onde ele está nesse momento. Está chovendo e eu o vi apenas de manhã. Para muitas pessoas uma amizade assim é um tanto de exagero, mas só quem tem um amigo é que pode julgar minhas palavras.

Outro dia o vi tropeçando nos moveis dentro de casa, em outro se batendo contra a parede. Pensei que era mais uma das suas patetices. Uma vez ele pegou uma lata de tinta spray sem o bico e sem querer apertou a válvula, a tinta espirrou e ele engoliu, passou três dias vomitando e babando amarelo. Eu não sabia se me preocupava ou se caia na gargalhada. Mas voltando ao assunto dos tropeços, continuei observando e então perguntei – você está bem? Claro que não me respondeu. Abriu um sorriso amarelo e cheio de dentes em direção a minha janta. E como sempre eu acabei repartindo, sempre faço isso. Chego a discutir durante quase meia hora comigo mesmo o porquê de acabar dividindo com ele, se ele tem a comida dele. Quando ele vai almoçar ou jantar eu nem vejo. Só vejo a vasilha suja e vazia. E mais, eu já o vi comendo na casa dos meus vizinhos. Pensa no quanto ele é descarado. Mas voltando ao assunto da pergunta. Minha preocupação aumentou quando ao me aproximar percebi em seus olhos, pequenas manchas brancas. Então deduzi. Ele está ficando cego. Como leva-lo ao médico? Um tratamento para esse tipo de coisa deve ser caro e eu quase não tenho o que comer e sei que ele só tem a mim. As outras pessoas são apenas legais com ele. Tenho medo que algo grave aconteça.

Escrevi essas palavras, e vestido de preocupação, lembro-me como se fosse hoje o dia em que nos conhecemos. Estava indo ao supermercado com minha ex-companheira, estávamos indo ali pela Munducurus, esquina com a Travessa Quintino Bocaiuva em direção ao bairro Batista Campos. Ao atravessar a rua escutei gritos desesperados e uma choradeira perturbadora. Olhei em todas as direções até avistar um contêiner de entulho próximo a um terreno baldio. Chegando até o contêiner, ele estava lá todo molhado e sujo de terra. Olhamos um no olho do outro durante alguns segundos. Seu olhar era tão triste. Nós nem havíamos trocado palavras e ele já estava começando com o abuso. Sai da vista dele por alguns segundos e ele começou a esbravejar. Quando o segurei no colo ele me lambia, me cheirava e até se urinou de tanta emoção ou será que ele estava me marcando como melhor amigo? Quando retomei meu caminho com minha ex ele começou a me seguir e ela disse – agora ele vai querer te seguir e pode até ser atropelado, você tirou do contêiner agora o que vai fazer? Coloca de volta.

Então, como sempre faço em minha vida, decidi jogar com o destino. Disse a ela – se quando voltarmos ele ainda estiver ai e vivo, vou leva-lo para casa. Antes de atravessar a Euclides da Cunha parei na beira da rua e contei meu plano e ele, que sentou na beira da calçada. Quando cheguei ao outro lado o olhei e ele deu um uivo choroso, quase um adeus e obrigado. Acho que ele não acreditou que eu voltaria para busca-lo.

No supermercado peguei uma cestinha e enchi de coisas para ele, sabão antipulgas, shampoo antipulgas, uma coleira e ração. Minha ex só fazia rir da minha proeza. Quando retornei ao local em que nos conhecemos, não o avistei. Pensei que alguém o havia levado, só me restava doar as coisas que havia comprado. Até que o avistei. Estava deitado na porta de um edifício, talvez esperando um pouco de ração de alguma alma caridosa. Todo molhado e sujo de terra, parecendo uma jujuba com verme. Ao me avistar correu em minha direção, me sujou todo. Bom ele faz isso ainda. Quando saio para o trabalho ele fica sentado na beira da rua e da um uivo melindroso que eu entendo como – não demora. Quando eu volto, parece que ele sente, e aparece correndo sei lá de onde, pulando e latindo como quem pergunta como foi meu dia. Quantas vezes o repreendi quando vinha cheio de alegria me receber, todo enlameado, mas feliz com minha presença. Agora compreendo quando aquela música diz: “meu sorriso é tão feliz contigo”. Escrevo essas poucas linhas para repartir com as pessoas o tesouro que é nossa amizade, que não significa para muitas pessoas, algo importante, mas que representa para mim, aventuras e desventuras de um amigo que muito tolerou minhas ignorâncias, mas que continua demostrando seu afeto por mim todos os dias. Você não é meu cachorro, é meu amigo. Eu não crio um cachorro, eu vivo com um. Nós moramos juntos, e como ser vivente, você tem o direito de ir e vir. Menos em dia de vacina.

Onde será que você está agora, amigo?

Myke Zirrô
Enviado por Myke Zirrô em 15/01/2017
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