A visão

O espaço era um local bem visitado, lugar propício, onde o perfeito e belo era o assunto da vez, onde o feio se tornava bonito, o tímido ganhava ousadia. Uma vitrine de exposição da perfeição, do chamativo, mas também, lugar de se ouvir difamações e impaciências de homens para homens. Não, não eram tão homens assim! Pedro então não hesitou em vasculhar alguns dos que estavam ali presentes, talvez nem o estivessem, mas tudo o levava a crer que sim. Um silêncio estarrecedor brindava o ambiente, carregado de muitos desejos e alguns nomes estranhos. Via-se ali Pedro, André, Ana, Casado Sigilo, Solteiro Sozinho e Anjo, entre tantos outros de nomes sem criatividade, de acordo com a proposta. O silêncio foi projetado ainda mais pelos inúmeros anúncios e propagandas, vindos não se sabia nem de onde nem pra onde. Pedro, estático como um poste, silencioso e bem agressivo nas poucas, porém, recheadas linhas, recebia o então convite de André.

_ Ah, Pedro! O sonhador dos muitos desejos, alguns muito bem escondidos dentro da forma equivocada, porém, necessária de viver, serena a que se entregara! Preguiçoso, ousado, vegetativo. Ana queria reencontrar o primeiro dos filhos, como a última esperança daquele ano, dissera a Pedro em visão, bem antes de Pedro falar com André. Pedro sentiu! Pedro viu!

Estava morto o Pedro, o rapaz das muitas ideias e vontades e nada dos desejos e objetivos realizados. A desilusão de homem e ilusão de vivente havia por certo impulsionado o rapaz a uma de suas últimas esperanças. Pedro era uma negação! Perdas e mais perdas era em quê se resumia o seu medonho viver. Um amor que não vingou estraçalhara a vida de Pedro em anos anteriores. Pensava ele ser aquele momento o seu último fôlego ou suspiro. Talvez, sua última chance na busca da tão cavada felicidade. Perante o carma que lhe sobreviera, a felicidade almejada estava em coisas e em pessoas. Dele por certo não havia nascido nada, pelo menos até então. E o espaço começou a bombar, movimentar-se das muitas chamadas, no cantinho daquele espaço pouco convidativo para seres que estavam acostumados ao real e verídico.

Quando nada mais de estranho parecia acontecer na vida de Pedro, eis que um convite desprovido de motivação chegara-lhe aos ouvidos, melhor, aos olhos. Munido de uma desmotivação surreal resolveu então abrir a mensagem recheada do português onde, maisena realmente vinha escrito com 's', e não com 'z', como se era na distinta marca. Puro jogo de marketing, assim como as noventa e nove por cento das muitas auto-promoções que se percebiam ali, todas a olho nu. Mas Ana, na vida de Pedro, era de verdade, sentia que tinha que reencontrar o filho antes da virada do ano. Uma humilde catadora de latinhas, no Parque do Sabiá. Pedro então tomou de um única nota de vinte reais deixada no balcão da cozinha, colocou-a novamente em sua carteira. Era a única que tinha quando partiu rumo a Uberlândia.

_ "Viu Pedro num relance em sua mente uma mulher catando latinhas, agarrada a pedaço de pão velho, ao qual roía pela boca murcha e desprovida de mais da metade dos dentes, onde as migalhas enchiam a papo dos muitos pombos do parque."

Ana foi uma mulher abandonada pelo marido na década de setenta no auge do seu sétimo mês de gravidez, com quem Pedro conversou em relance antes de André. Na visão, Pedro sabia que André e Ana pertenciam um ao outro! Não sabia explicar, mas sabia que era real tal visão.

André então intercala a conversa e disfere seu boa noite, acalorado ao doce e enrijecido de vida infame! Respondeu a Pedro, nas mesmas medidas e proporções. Rendeu. Rendia umas colocações fora de contexto, como quem pedisse oportunidade. Pedro, teimoso em não dar vasão àquele assunto, não se encurvou aos desejos de sua consciência. Começava então a via-sacra na vida de Pedro e André e a solução na vida de Ana. Cidade de Uberlândia foi o cenário do 'vai valer a pena' da vida de Pedro, ou melhor, na vida de André e Ana. Seria, a saber, seu próximo destino. E que destino os aguardavam!

Depois dos muitos assuntos, alguns de total conformidade e mútuas reciprocidades, Pedro entregou a André sua real sordidez de viver. Fatalidade, talvez. André logo abriu-lhe a vida desde a juventude até aos dias presentes. Quarenta e cinco, dizia. Bem vividos, porém, marcados pelas decepções quase que copiadas da vida de Pedro. André era órfão e um dos seus maiores sonhos era saber do paradeiro de sua mãe. Certamente este era o motivo que ainda movia aquele assunto ao progresso tão vagaroso e sutil na vida dos dois. Era um crítico de teatro fora de suas funções, o André, de palavras muito bem colocadas e, ao mesmo tempo agressivas, como quem ordenasse melhoria aos seus criticados.

Quanto mais o assunto discorria, mais distantes ficavam as outras pessoas do ambiente ocioso e feio. Ambiente feio de assuntos pelos muitos adjetivos pejorativos ali narrados. Pedro não se deixava entender por nada, mas nem se o papa resolvesse entrar naquele lugar e estender-lhe uma copiosa bênção divina! Trocaram contatos e pelo telefone com código de área 034, do outro lado da linha, na cidade de área 031, eis que a atendente fez uma reserva a Pedido de André, contra a vontade de Pedro.

_ Está comprada a passagem! Ou você embarca ou então os cento e sessenta nove reais ficarão desperdiçados! Exclamou André, à todo desejo!

Pedro pensava: _ só pode ser carência, não tem como! É surreal uma coisa destas!

E ao mesmo tempo a visão que tivera de Ana sufocava-lhe o peito! Pedro então segue para a rodoviária com documentos em mãos e no guichê dá o número de protocolo passado via telefone por André, fornecido pela atendente. A mesma então confirmou os dados e imprimiu a passagem por decisão de Pedro! Alívio e tontura na cabeça de Pedro, tamanha ousadia! Embarcou no convencional, sentido à cidade do 'vai valer a pena' que Pedro dizia sentir. Sem nenhum centavo no bolso, a saber, míseros vinte reais decorando a falência. Pobre de tudo! De emprego, de amores, de felicidade, porém, movido pelo instinto natural de homem decente, medroso, amoroso, cordial, receoso, mas como todo bom mineiro excelente nas suas cavadas nas minas!

Cavava uma felicidade baseada em amores, de vida à dois, na nova configuração de famílias, tão debatida, e, ao mesmo tempo, refutada na sociedade que tentou erroneamente se encaixar. Alguns humildes tapinhas nas costas eram o que fazia com que praticamente todos os de mesmo viver acreditassem que fosse a nova configuração de família! Foi como um tiro no escuro aquela viagem! Só foi. Havia um destino, mas qual destino? Não sabia o quê exatamente o aguardaria em Uberlândia! Mas foi movido pela visão. Foi quando no convencional das vinte e duas horas e trinta minutos, momento em que todos naturalmente se preparavam para repousar do dia cansativo, eis que o cavador da felicidade estava com um par de olhos estalados como dois ovos, porém, como quem estivesse indo rumo à morte. O ser de Pedro foi tomado pelo medo, insegurança, aflição. A visão retorcia-lhe os sentidos! A estas alturas do campeonato nada mais poderia lhe causar tanto medo! Sua vida estava enfeitiçada, o que pensava ter sido seu desamor que toda a sua vida havia afundado. E foi. Pedro amou o ausente no ambiente, mas presente dentro no seu coração.

O sono que não veio é que foi sua companhia durante aquelas infindáveis programadas oito horas de viagem. Mas o 'vai valer a pena' era mais forte dentro de Pedro, na sua viagem dos vinte reais dentro da carteira. Tentou pregar os olhos e nada! E na viagem seguia, parecendo ir a caminho da desova, mas ia crente na sua aventura, ensejo e visão, pensando cavar a sua felicidade.

Viagem feita, eis que chega na cidade de Uberlândia. Logo antes, na cidade por nome Luz, a qual não conhecia, se deparou na entrada da cidade com uma mensagem saudando com um enorme "bem-vindos à cidade Luz", em letras garrafais! Novamente, a primeira mensagem animadora durante todo o processo na vida de Pedro era mais uma mensagem. Pedro buscava verbos, sons, adjetivos, conectivos, não mensagens escritas em ambientes de papiro, das quais ainda não se valia. Mas foi por meio delas que tudo veio suceder. Pedro acreditou em Ana! Teve.

André, de prontidão, recebe a Pedro, aos frangalhos por conta da noite mal dormida dentro do convencional. Dormir na vida de Pedro era como saúde, sagrado, mas tivera que arriscar. Arriscou. Arriscou e riscou também a prova de fogo que haveria de constatar aquele pensamento de 'vai valer a pena!' Sem muito assunto e mediante as narrativas descritas no ambiente de papel por André, estava lá para além das aparências. Pedro sempre foi homem para além das aparências, tanto físicas quanto materiais! André muito se encantou com a vida de Pedro. Não entendia Pedro o porquê, mas se encantou! Pedro tinha uma visão distorcida da beleza, não sabia se descrever. Para ele, beleza era aquilo que se podia tocar, sentir, ouvir, sentir os cheiros. Estranheza de pensamento, mas era assim que enxergava a vida! Entre um passeio e outro, ao lado do estádio João Havelange, o Parque do Sabiá fora o cenário escolhido por André e Pedro, mais por André, o conhecedor daquele estonteante lugar. André apenas vivia do aluguel das suas casas e de um salário sofrido que recebia de uma companhia de ônibus da cidade, na qual era cobrador. Mas André tinha as condições necessárias para o que havia se proposto a fazer na vida de Pedro, o cavador da felicidade.

Cumpridos os doze dias ali previstos, André, totalmente derretido aos encantos de Pedro por causa das vivências, modo de vida, forças, sobrevivência, superação, deslizes, da superação de perdas tão importantes em sua vida que venceu, às quais haviam lhe tornado num ser triste, amedrontado, arredio, mas num verdadeiro campeão! Um bicho, talvez, mas Pedro já havia sido instruído na vida. Estudou. Um pouco. Dedicou-se e muito! Dedicou e deu o sangue ao que se propôs a fazer em tempo, mas a amarga tristeza amorosa em sua vida havia destroçado o pobre rapaz. No entanto estava cavando sua felicidade, do outro lado do seu estado de naturalidade, da forma mais vexatória e inerente a um homem de objetivos. Fracassados, mas eram os desafios que lhe importunavam a mente, como quem realmente acreditasse de que valeria a pena, em algum momento de sua vida na tal ação.

Era mês de dezembro, quase Natal. Pedro se encantou por André. Via nele uma pessoa que pudesse ressuscitar-lhe o amor, o desejo na alma. Havia só o desejo por André, sem a alma, uma faísca de fogo, mas o amor ainda não havia nascido. No entender de Pedro o amor não era o físico, mas a sensibilidade aguçada, o encanto despertado, os valores reconhecidos e as incompreensões aceitadas. Valores perdidos pela vida, notórios, mas como então realizar tais resgates?

Quiçá nesta aventura o fosse, mas o inesperado e ao mesmo tempo previsto estava ainda por ocorrer. O combinado foi de que Pedro passasse o Natal em família e que depois retornaria, quase no Ano Novo, para dar continuidade e concretização àquele 'vai valer a pena', tão martelado na cabeça de Pedro. Passou o Natal e as inúmeras ligações invadiam a alma de Pedro, fazendo-lhe então cair nas graças de André. Não havia paixão, apenas o desejo de estar do lado. André sentiu falta dos momentos íntimos, tão bem arquitetados e realizados, mas Pedro estava vulnerável sentimentalmente, ferido ou melhor dizendo, morto em vida! Não coabitaram por ironia do destino e pela aprovação de Deus! O amor havia lhe dado a vida e de mesma forma ceifado, como colhem-se as rosas. Lindas e cheirosas, mas logo após, murcham e morrem. No entender de Pedro, rosas eram bonitas nas roseiras, em seu mundo! Quando colhidas para nada mais serviam!

O inesperado e previsto então aconteceu. Movido de uma arrogância e uma crítica totalmente descabida, eis que André soltava sobre a vida de Pedro sua altivez e agressividade. Ríspido e sem nenhum pudor, fala-lhe sobre coisas jamais antes escutadas. Desentenderam-se por causa do homem que tinha alma de mulher! Pedro era amor, docilidade, ingenuidade, segredo, afeição, sentimento. Um corpo de homem feito de mulher, ou uma mulher num corpo masculino! Quase que uma Alice ou Peter, mas era. Na verdade Pedro era Ana, no corpo de homem.

E assim, depois daqueles golpes tão destruidores na vida de Pedro, resolveram então de que não haveria mais Ano Novo, nem vida nova. André assassinou Pedro e entregou o corpo a Ana, que viveu ainda na mesma condição de sempre! E a nota de vinte reais que Pedro havia tomado de cima do balcão da cozinha na casa de André, impulsionou Pedro àquela mulher, que energicamente o arrastava, numa força descomunal. Ela só queria reencontrar seu filho tirado pelo marido que não foi homem, subtraindo-lhe a cria, devido as condições em que vivia, precária e sem moradia fixa.

Ana então reencontrou André, o primogênito de três. Tudo não passou de uma grande lição na vida de Pedro. Pedro retornou à sua cidade sem o cavado amor e ainda mais destroçado sentimentalmente do que havia sido quando na partida. Valeu a pena! Foi tudo culpa da visão que ele não compreendia, mas sabia que havia tido. Pedro era a mãe de André! Passados dois anos, Uberlândia novamente seria o palco da felicidade de Pedro, melhor, Ana. Retornou e pôde assim, no último dia da vida de André, deixar em seu túmulo uma rosa, colhida no Parque do Sabiá. Assim como a rosa, André partiu, acometido por uma enfisema pulmonar, sem ter o conhecimento de que Ana seria sua mãe, à quem ele tanto procurava.

Pedro sucumbiu, enterrou-se junto aos ossos de André e entregou sua alma à Deus, por tudo que havia lhe acontecido. Cumpriu-se então a visão. O amor cavado não passou de um pretexto para que Pedro e Ana pudessem dormir ao lado de André, o seu primogênito.

O encontrou!

Daniel Cezário
Enviado por Daniel Cezário em 10/01/2017
Reeditado em 10/01/2017
Código do texto: T5877678
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