Sem chão subitamente.

Ela saiu dizendo “vou alí e já volto”. Sentado no sofá da sala concentrado na leitura de uma obra eu ouvi a frase - só que meu cérebro não fez registro da informação, porque a atenção estava completamente focada no texto que eu lia - e continuei absorto querendo compreender a história em minhas mãos. Li tanto que me cansou a vista. Finalizei o capítulo já iniciado e só então acomodei o marcador na dobra para fechar o livro. A chuva que há pouco caíra torrencialmente estava mais branda, levantei do sofá justo quando alguém acionou o porteiro eletrônico do lado de fora do muro e cujo interfone fica instalado na cozinha. Aproximei-me do aparelho, tirei o fone do gancho e disse: - Alô, quem está aí?

- Sou eu, Monstro. Ela me chama carinhosamente dessa forma “monstro”. Acostumei-me. Abre rápido pra eu entrar, ela pediu.

Fiquei deveras estupefato com a surpresa de ouvi-la falando da rua, estava convicto de que ela estivesse no quarto, na varanda, na copa, atarefada com qualquer coisa, sei lá o quê, e, ao invés de acionar o botão que abre o portão, perguntei:

- O que você faz aí, embaixo desse aguaceiro?

- Monstro, meu monstrinho querido, estou quase me afogando. Abre logo esse portão ou você não almoça mais hoje.

- Por que está me ameaçando?

- Daniel, se eu pegar um resfriado nem sei o que vou fazer contigo. Abre logo isso!

Pronto. Acordei. Quando ela me chama pelo nome, é porque o mundo está se acabando. Acionei o botão. O portão se abriu, ela entrou e contornou o prédio até a cozinha. Quando surgiu na lateral da casa, eu já estava em pé no batente da porta aguardando ela entrar. Minha esposa chegou de forma irreconhecível! Era lama da cabeça aos pés.

- Megui, o que foi que te aconteceu? acudi solícito.

- Fui ao mercado comprar ketchup.

- Ao mercado! e por que você chegou neste estado?

- Cai num buraco e quase me afoguei.

- Como assim?!

- Simples, essa gente que trabalha na administração pública não quer nada com coisa nenhuma a não ser usufruir do nosso dinheiro, ninguém aparece para fiscalizar as obras da Cidade. É possível um negócio desses!

- Explica isso melhor, pra eu entender.

- Você se lembra daquele buraco enorme em frente ao terreno baldio na altura do Supermarket? Pois é, a equipe da Cedae cavou aquela cratera mas não balizou o entorno informando da obra. No caminho de ida eu atravessei a rua na faixa de pedestre, sob o semáforo. Já na volta, com a água na altura da canela, não havia carros circulando, então eu saí da loja, desci a calçada e cruzei a rua empurrando a água com os pés. Tudo ao redor estava encoberto, inclusive o meio-fio. Com a escavadeira estacionada mais pra direita, próximo ao ponto de ônibus, confundi o local onde fora aberto o buraco e caí nele sem deixar vestígio. Um homem que seguia numa motocicleta enfrentando o aguaceiro me viu cair. Foi a minha sorte. Ele disse que eu sumi completamente levando comigo o guarda-chuva. Lembro que eu desci ao fundo, tomei impulso e voltei à tona d’água batendo os braços e pedindo socorro. O rapaz desligou a chave na ignição, tombou a motocicleta no asfalto e correu em meu auxílio.

- Minha nossa! Você não está machucada, arranhada, com dores, nada?

- Na hora, eu saí do buraco assustada e com raiva, eu confesso. Agora, não. Já me acalmei. Só preciso tomar um banho e me livrar dessa água barrenta.

- Sabe que essa tua tranquilidade me assusta? Você pode até estar bem, entretanto, isso que aconteceu é muito grave. A gente precisa processar a Cedae. Um buraco desse tamanho que engole fácil uma pessoa adulta não pode ficar abandonado desse jeito. E se você morre? É melhor nem pensar no assunto.

- Tem razão, sem alguém por perto uma criança não se salvaria. Os comerciantes próximos informados do meu incidente, logo correram e colocaram obstáculos em torno da obra. Fizeram isso por conta própria, para eliminar qualquer risco de morte ou que outra pessoa sofra o que eu sofri. E estão certos! Já que os donos da obra não o fazem, alguém tem que se preocupar e agir. Até eu ajudei. Coloquei um peso sobre um banco que alguém arranjou e a correnteza d'água ameaçava arrastar.

- Temos que agradecer o cara que te socorreu.

- Ele foi muito gentil, e disse o nome do bairro onde mora, só não estou lembrando agora.

- Tá vendo como é que as coisas acontecem, é assim, do nada e tibum.

- Tem razão. Eu queria fazer um tempero diferente pra colocar no macarrão e precisava de ketchup. Notei que o céu estava muito escuro e caia uma chuvinha persistente, como o mercado fica aqui perto, fui depressa, quase correndo comprar o ingrediente. Calculava voltar rápido, só que, ao entrar na loja, lembrei que precisava trocar as pilhas do controle da televisão. Perdi tanto tempo atrás das pilhas e olhando preços que, quando saí pra vir embora, chovia torrencialmente e a rua já estava alagada.

- Taí a fonte do perigo, Megui, você devia ter esperado a chuva diminuir e a água baixar antes de voltar.

- Fiquei ansiosa, não queria atrasar o nosso almoço. Apesar de tudo, veja, fiquei sem o ketchup, sem as pilhas, o guarda-chuva, a carteira de dinheiro e ainda atrasei o almoço. Minha sorte foi não ter levado o cartão do banco nem a identidade.

- Sorte que você está viva, isto sim! Que susto, hein! E eu achando que você estivesse dentro de casa. Não notei quando saiu.

- Meu bem, eu tenho certeza de que eu ainda vou rir de gargalhar por conta de tudo isso. Quando eu me lembro do tombo, imediatamente recordo o quanto foi trágico ficar sem chão subitamente, porém, a sensação que eu experimentei caindo n'água foi muito engraçada. Vim rindo de lá até aqui. É sério! Depois eu tento explicar.

- Sem comentários, Megui.

Dilucas
Enviado por Dilucas em 21/11/2017
Reeditado em 16/03/2024
Código do texto: T6177839
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