GUILHERME, RAFAEL E "O PRETINHO" (18/11/17~01:00 - 20/11/17~01:40)

Espeterias são a mais nova moda no mercado gastronômico de Belory, infestaram a cidade nos últimos 5 anos. Apareceu há alguns meses uma na esquina da minha casa. Eu sempre passava na porta, e ficava aquela curiosidade de saber como seria o cardápio dali, o atendimento, os preços, a sensação de estar sentado no local...

Sexta à noite. Passei mal o dia INTEIRO com vômito e diarreia, em jejum e de cama, com medo de comer alguma coisa e vomitar logo em seguida. Pensei, "é hoje que eu vou matar a curiosidade e conhecer essa espeteria. Se tiver que passar mal, que eu bata as botas e MORRA o mais rápido possível". Tomei um sal de fruta pra 'dar um grau' no estômago chiliquento e fui... Atravessei a esquina.

Chegando no local. Estava tocando uma mistura de música sertaneja com caipira. Música caipira, eu sempre gostei. Mas sertanejo, eu sempre gosto de lembrar aos adeptos, "quando Chitãozinho & Xororó surgiram na década de 80 'inaugurando em larga escala' esse estilo, o nome do ritmo era 'brega'. 'Sertanejo', originalmente falando, era o que o Sérgio Reis, o Almir Sater e outros grandes nomes da música brasileira faziam na época. As gravadoras de discos forçaram a barra e passaram a chamar 'brega' de 'sertanejo', e o 'sertanejo original' passou a ser chamado de 'caipira' pra, então, lançarem Leandro & Leonardo e Zezé Di Camargo & Luciano porque seria mais comercialmente viável lançá-los com o nome de 'sertanejo' do que o nome verdadeiro 'brega'. E, desde então, vemos esse troca-troca pelas rádios e bares brasileiros"...

Mas, então, chegando no local, havia música ao vivo, uma mistura de brega e "sertanejo original". Se ficasse só no caipira, ou sertanejo "original", tudo bem. Tudo ótimo! Mas, como eu tenho um estopim "levemente" curto pra música brega (#PorqueYoNoSoyObrigado!), coloquei meu fone-de-ouvido e, escutando Oasis, analisei o cardápio do local (uma das curiosidades que me levaram até ali), e vi que o cardápio não me agradava muito. Muito espeto de carne. Eu gosto de carne, sinto prazer em comer carne, mas nunca fui viciado. Gosto, mas passo meses sem comer e não sinto falta nenhuma. E, numa espeteria, eu costumo gostar de experimentar o que eles têm além de carne. Queijos e, talvez, carnes mais leves, como salsicha e presunto. Mas não vou a uma espeteria pra comer alcatra nem picanha, por exemplo. Como lá não tinha quase nada a não ser carne "pesada", pedi uma porção de fritas com queijo e um suco de laranja. Apesar do cardápio não muito bom, a rapidez do atendimento me assustou bastante... Chegaram a batata e o suco em pouquíssimos minutos. Ouvindo o meu rock britânico no media player, o show ao vivo acabou. Acabando a baranguice ao vivo, tirei os fones-de-ouvido e passei a comer e beber prestando atenção nas mesas à minha volta.

Eram 4 mesas. À minha extrema esquerda, uns 8 chapados, uns 6 homens e 2 mulheres. Gente bêbada já ganha meu desprezo gratuitamente, sem mais nenhum outro motivo. Por isso, foram automaticamente ignorados. As próximas 2 mesas, à minha frente, tinham crianças. E à extrema direita, a 4ª mesa, estava vazia. Foquei as 2 mesas à frente, uma ao lado da outra.

Quem me conhece intimamente sabe que eu sou alucinado por criança. Tenho uma dificuldade muito grande em prestar atenção num adulto falando se houver uma criança por perto, por mais quieta que ela esteja, pode estar até dormindo. Se estiver dormindo, eu fico com vontade de pegá-la no colo. Se estiver acordada e escondida debaixo da mesa, eu fico querendo ir lá ficar escondido com ela. Se estiver correndo e gritando, eu quero correr e gritar também. Na presença de crianças, adultos costumam ser irrelevantes pra mim. E isso é uma compulsão, não consigo pensar em outra coisa além de correr e gritar se eu vejo crianças fazendo isso. Algo que me suga por completo...

Nas 2 mesas à minha frente, separadas por uma pilastra, uma à esquerda e outra à direita da pilastra, havia 3 meninos. Um garoto negro na mesa da esquerda e dois brancos na da direita. O da esquerda era mais velho e mais alto que os branquinhos. O negro deveria ter entre 8 e 9 anos e os dois da direita, 6 e 7 anos.

O negro estava numa mesa com a mãe, negra também, e bastante carinhosa. Sentava-o no colo, apesar de ele já ser um garoto bem alto, acariciava-o bastante, beijava, apertava, coisa que eu acho que muito menino hoje tá precisando... E a mãe, por sua vez, estava numa mesa acompanhada por um namorado muito gordo e aleijado, numa cadeira de rodas chiquérrima, toda motorizada e cheia de faróis. Dava a entender que era mãe solteira, porque o aleijado falava com o menino se intitulando de "tio".

Os dois meninos brancos já não pareciam ter uma família ou, pelo menos uma mãe, tão carinhosa. Enquanto na mesa do aleijado só havia mãe e filho, a mesa à direita da pilastra se encontrava mais cheia, com umas 6 ou 7 pessoas. Parecia uma reunião de família. Não sei se, por ser uma situação mais social, a família se inibisse de dar afeto aos meninos (embora JAMAIS tenha me passado pela cabeça deixar de sair correndo e gritando, pegar no colo, esconder atrás das árvores ou o escambal a quatro, independentemente de quais adultos estivessem na minha frente, ao ver crianças fazendo isso)... Situações sociais não costumam me inibir de demonstrar afeto ou outras coisas que eu venha a sentir. Mas eu não sou a família da mesa à direita. Eles são outras pessoas e, talvez, pela situação familiar ali, os dois garotinhos estivessem mais privados de afeto do que o negro mais alto da mesa à esquerda.

O negro começou a encarar os meninos da mesa à direita. E a mãe, percebendo que ele queria chamá-los pra brincar, estimulou-o a convidá-los. Os branquinhos menorzinhos perceberam que estavam sendo encarados, responderam a provocação se aproximando em silêncio e, em poucos segundos, estavam os três conversando alegremente. Pulando e gritando.

O negro, rapidamente, aprendeu o nome dos dois menores: Guilherme e Rafael. Propôs a eles que brincassem de se esconder, o que os dois concordaram imediatamente.

O negro colocou o rosto na pilastra que separava as duas mesas e começou a contar, pra que os outros dois branquinhos corressem pra se esconder. Talvez por ser maior e mais velho que os brancos, ele sempre encontrava os dois com facilidade.

Uma coisa engraçada era que, não importava quantas vezes seguidas o menino negro encontrasse os dois menores, ele sempre voltava à pilastra pra reiniciar a contagem e procurá-los novamente. Na regra que eu conheço, quem é encontrado numa rodada fica na pilastra contando na rodada seguinte. E, de rodada em rodada, vai-se fazendo um rodízio de quem procura e de quem se esconde. Mas, por vezes seguidas ali, só o negro escondia o rosto na pilastra, e saía pra procurar os dois garotos brancos. Achei estranha essa "função pré-definida", que não mudava de uma rodada pra outra...

Após algumas várias rodadas do menino negro ter ficado na pilastra, um dos branquinhos se dispôs a ficar contando na pilastra enquanto o outro menorzinho e o negro iam se esconder. Ao terminar a contagem e sair pra procurá-los, o irmão (ou primo, talvez, quem sabe?) foi achado primeiro. E, enquanto o negro continuava escondido, um falou pro outro euforicamente:

"Tá faltando encontrar 'o pretinho'"...

O primeiro detalhe que chamou minha atenção, as "funções pré-definidas" na brincadeira. O segundo detalhe que me fez pensar, o negro era bem mais alto que seus amiguinhos brancos. Não deveria haver motivos, na minha opinião (que assistia de fora a todo esse espetáculo infantil), pra chamarem o negro no diminutivo. Fiquei pensando no histórico sócio-familiar desses dois garotos brancos, que talvez os tenha ensinado a tratar no diminutivo uma criança de outra etnia. Será que eles ouvem os familiares tratando as empregadas domésticas negras no diminutivo e, daí, aprenderam a reproduzir tal comportamento? Será que aprenderam na escola? E que consequências essa diminuição (diminuir, colocar no diminutivo) terá na formação das personalidades dos dois garotos brancos e de aparência burguesa? Uma simples frase me despertou todos esses questionamentos...

Uma terceira questão que me chamou a atenção, a frase do "pretinho" foi falada bem ao lado da mãe dele e ela não tomou atitude alguma. Imediatamente, eu me coloquei na situação dela. Não sou mulher e não sou negro, sou branco e de ascendência europeia por parte de mãe e de pai. Meu sobrenome é todo hispano-judaico. Mas me imaginei com um filho negro. Não me imaginei mulher, nem negro. Não me passaram essas coisas pela cabeça. Eu poderia ter um filho com uma mulher negra, ele provavelmente teria uma pele de cor bem diferente da pele dos dois meninos brancos. E poderia estar ali com meu filho negro escondido na brincadeira de se esconder, sentado no lugar dela, ouvindo o comentário sobre o "pretinho" a poucos centímetros do meu ouvido. Ela teve uma atitude omissa, nem sei se ela chegou a ouvir o comentário. Talvez ela estivesse pensando em outras coisas, com a cabeça longe... Quem sabe? Mas, se eu estivesse no lugar dela e tendo escutado o comentário no diminutivo, eu chamaria os dois meninos e falaria algo do tipo:

"Ei, venham cá, amiguinhos. Vcs sabiam que o 'pretinho' tem nome? Ele se chama '...' (o nome dele não havia sido falado em momento algum até aquela hora)".

Tudo de uma forma brincalhona, sem agredir ninguém. Sempre interagi muito bem com crianças, sempre falei tudo que eu quis a elas e nunca tive dificuldade de ser compreendido por elas. Essa vez não seria desafio algum. Falaria pros dois o nome do negro de forma brincalhona, proporia a eles que o chamassem pelo nome (assim como ele aprendeu os nomes dos dois branquinhos, Guilherme e Rafael, logo no início do jogo, uma atitude singela e de muito respeito) e os colocaria de volta na brincadeira de se esconderem "como se nada tivesse acontecido"...

Mas não, a mãe não interveio. Será que ela não ouviu? Ou será que ela já está acostumada com diminutivos, e se acomodou? Fiquei questionando isso tudo, e imaginando que minha postura seria bastante diferente da dela.

"Ah, mas vc não é negro e nem mulher. Fácil falar...", alguém talvez pudesse argumentar. Mas o fato de a situação se passar entre crianças favoreceria muito a minha intervenção por eu já saber lidar com elas, e saber que eu conseguiria dar o recado com simplicidade e eficácia. Por isso, a minha segurança em dizer que eu interviria de forma diversa da dela. Achei "o pretinho" um abuso "embrulhado numa roupagem infantil". Duas vertentes sociais e étnicas distintas, em mesas separadas, lado a lado no mesmo recinto, se interagindo através da brincadeira de seus infantes.

Criança são inocentes, singelas, espontâneas. E tudo isso nelas me encanta bastante. Mas essa pureza vai sendo gradualmente inserida num contexto sócio-econômico, à medida que a personalidade delas vai se formando.

E como tem sido feita essa inserção sócio-econômica? Culpar o governo ou a crise não surtirá resultados frente às dificuldades...

Passados alguns segundos após "o comentário sobre o pretinho", o negro foi encontrado e voltou a ficar na pilastra contando, regra essa deles que eu fiquei sem entender... Uma forma de encaixá-lo em uma determinada função na brincadeira? Não sei. E será que ele foi submisso nesse encaixe? Também fiquei sem saber...

Passadas mais algumas rodadas da brincadeira, o negro foi embora com a mãe, após se despedirem do namorado aleijado. Ali, a mãe chamou o menino pelo nome: Josué. Só então, eu fiquei sabendo o nome dele. Senão, ele seria "só um pretinho", sem nome, sem qualquer outra forma de identidade...