Os Velhinhos: Dona Celeste ''Devolve Anjo''

Esse é o meu terceiro conto (de 5) sobre moradores de um mesmo asilo e suas histórias pessoais.

Celeste talvez fosse a mais distante entre os moradores do asilo. Não era uma mulher grosseira e muito menos era menos querida pelos seus companheiros do Caminho do Sol. Contudo, a dona do quarto 4 carregava dores que se faziam de pétalas ainda fechadas enquanto ela estava presa consigo mesma lá dentro...uma matáfora para dizer que Dona Celeste ainda não desabrochara.

Era quase sempre apelidada de Jovelina Pérola Negra, não só por se parecerem muito mas também pelo sorriso. Só que nossa Celeste não sorria muito, eram risos decorridos do dia a dia, motivados por conquistas pequenas que ela ou conhecidos conseguiam. Sua dor chegava a ponto de querer não sorrir para não trair suas memórias mais tristes.

Ela não teve um bom casamento. Casou-se por pressão familiar, com um homem que queria exercer uma autoridade quase ditatorial mesmo que ele fosse o pior exemplo. Deixando Celeste e o filho recém nascido após o casamento, sozinhos em casa e sem quase nenhum dinheiro. Parte do que ele ganhava como motorista de ônibus, era para pagar sua cachaça e suas amantes. Não permitia que Celeste trabalhasse.

Jovem, mulher, negra e mãe, reclusa e quase trancada em sua casa. Seu filho era seu refúgio mas ver ele chorando por um doce ou outro que não tinha em casa, cortava seu coração. As brigas para que ela pudesse trabalhar como manicure ao menos só davam em gritos e algumas vezes em agressões físicas.

Só que ninguém poderia imaginar que a maior das dores dela estava por vir, com Miguel completando 7 anos, ela descobriu estar grávida. Por algum motivo, ela sentia que não poderia mais continuar naquele casamento. Teria que fugir para que o jovem Gusmão que estava por vir, não fosse testemunha das discussões e da pobreza graças a um pai negligente. Mas não se passou de plano...ao tentar fugir enquanto seu marido estava no bar, ele viu os dois passando próximo e ao deduzir pelas malas, arrastou Celeste pelos cabelos em lágrimas e o menino pelo braço até dentro de casas. Vizinhas amigas tiveram que recolher as coisas dela e devolver no dia seguinte.

Gusmão nasceu e se tornou o pequeno sol dela, algo na ligação deles era quase mágica. Viver naquela situação quase não doía quando lembrava em ter que estar com seu filho mais novo. Foram três anos quase encantados pela alegria do menino, todos comentavam que ela adorava o menino como se ele fosse algum salvador, e por instantes quase foi. Gusmão foi raptado na feira em que Celeste fora comprar mantimentos, após gritar e perguntar a procura dele, ela jamais o veria novamente.

Caída e depressiva era o novo estado da mulher. Sem vontade alguma de ser feliz enquanto não tivesse seu filho nos braços. Mesmo tendo Miguel, o garoto teve que criar-se praticamente sozinho. O que gerou uma profunda dor em ambos: Celeste não o reconhecia e ele não conhecia sua mãe. Foram se afastando e quase todo contato era por causa de regas familiares e sociais, eles se perderam mesmo tão próximos.

A saúde mental dela começou a ter um estranho comportamento, enxergar Gusmão por aí. Seu ''apelido'' de ''Devolve Anjo'' começou ainda nos anos 80. Quando raptou um menino que acreditava ser seu filho e logo depois percebeu que não era além de imaginar que a mãe do menino, estaria sentindo a mesma dor que ela. Mas era só o começo, naquele mesma e na próxima década que seguia, ela raptara certa de 8 crianças do mesmo jeito...acreditando ser seu filho perdido e logo percebendo o erro e a dor da distancia familiar entre as crianças e seus pais.

Para não dar trabalho a seu filho, ela optou por ficar morando no asilo, onde poderia se entreter consigo mesma e ser acompanhada. Ela enxergava a si como uma promessa jamais cumprida, uma flor que jamais chegou a primavera e pôde florescer. Mesmo que dores e mágoas tivessem cortado seu coração há tanto tempo, ela sentia medo de se entregar a felicidade pois não entendia o que era isso. Uma criança com pai severo, sem mãe, com irmãos que não gostavam dela, um marido bêbado e agressor, um filho sequestrado, um outro que quase nunca conversava além de fingir que são próximos...do que ela poderia ser feliz? Por conseguir fazer um bolo gostoso? As companheiras que sempre tentavam ser suas amigas?

A felicidade e bem estar humano é por demais complexo. Buscar nossa paz e compreensão é como nadar fundo o máximo possível e cortar da própria carne certas manias e medos acumulados. Perceber quem nem tudo é para sempre, inclusive certos sentimentos. Desvendar a si mesmo é uma missão longa e que pode assustar a maioria, há pessoas destruídas que encontram um paraíso interior e certas tão confiantes que se assustam na primeira ameaça de não serem assim tão fortes.

TEXTO E REVISÃO: Raphael Maitam

Seja bem-vindo para ler esse conto e mais outros no meu livro disponível no wattpad: https://www.wattpad.com/story/118616926-versos-por-aí-segundo-volume