Só o que for importante

Meu nome é Maíra, tenho quinze anos e até hoje o único lugar que eu pisei, foi no meu sertão. Nunca viajei para canto nenhum, nem de ônibus eu andei, acredite se quiser. Aqui, o meio de transporte da minha família é uma charrete puxada por um jegue, o nome dele é Mata Sede, sugestivo né? Afinal, eu moro no sertão de Cabrobó, cidade que fica no estado do Pernambuco e matar a sede é o desejo de todos que aqui sobrevivem. Já tem pra mais de anos que não vejo uma chuva forte, o que às vezes cai do céu é um sereninho que não dura mais de meia hora. Você que está lendo, não sei de onde é, mas aqui onde moro a terra é seca, muito seca, um poeirão sobe só de bater um ventinho bobo. Sabe como a gente mata a sede? Não? Pois te conto!

Há oito quilômetros daqui tem um açude barrento, daqueles que a água é esverdeada nas bordas e enlameada por dentro. O açude é pequeno e é o que tem salvado os dias da minha família e do pessoal da redondeza.

Painho, logo cedo, às quatro horas da manhã se levanta, veste sua roupa de lida, não que ele tivesse outra opção, é a única que ele tem, a outra muda de roupa ele usa para dormir. Come um pouco de farinha com água e arria o Mata Sede, sobe na charrete e os dois vão buscar água do açude. Esse trajeto ele faz três vezes na semana. Sinceramente não sei até quando o Mata Sede vai fazer parte da nossa família... Ele tem oito anos, é muito, mas muito magro, seus ossos são saltados e ele anda bem devagarinho, arrastando as patas meio a terra seca do caminho. Parece que o Mata Sede sabe da sua missão aqui nesse mundo, porque é só olhar para cara dele que a gente percebe que não está aguentando nem o próprio peso do corpo. Os dias que ele bebe água são os mesmos que ele faz os oito quilômetros para chegar até o açude. Painho e o Mata Sede, levam mais da metade do dia entre a ida e a volta do trajeto. Os dois quando chegam estão de língua para fora, exaustos do calor e do sol quente que bate no lombo o dia todo.

Painho tem quarenta e seis anos, mas ninguém dá a ele menos de sessenta. Desde que aprendeu a andar ele trabalha na roça, isso é o que me conta nos dias em que se sente saudoso. Quando muito novo já ajudava voinho a plantar mandioca e um tiquinho de milho na terra seca. Hoje em dia ele faz a mesma coisa, planta mandioca e um pouco de milho para sustentar mainha, eu e meus dois irmãos. A única coisa que ele fez diferente de meu voinho, foi ter matriculado seus filhos na escola. Para mim e meus irmãos, ele sempre diz:

- Algo precisa mudar na nossa família, ocês não pode e não deve seguir o memo caminho que meu painho fez e eu segui. Tenho fé que a escola e nosso Padin Cícero vai ajudar!

A escola é longe de casa. Meus irmãos e eu caminhamos pelo menos uma hora para chegar lá. Isso de manhazinha, mas já na quentura do sol. O local é pequeno, tem só quatro professoras e na minha sala tem alunos de todas as idades, meu irmão de oito anos divide cadeira comigo. É difícil para professora dar um jeito no barulho que a turma faz, mas ela consegue, porque promete que o lanche da manhã não tarda a chegar. Sempre, nunca mudou desde que comecei a estudar, o lanche são cinco bolachas tipo maisena e um copo de leite puro, mas é o café de todo mundo que está ali dentro e que vai a escola todos os dias. Lá, nós temos o direito de beber pelo menos cinco copos de água até a aula acabar.

O nome da minha professora é Reginalva, mulher muito generosa e que trata a gente como filhos. Ela me ensinou a escrever meu nome, a ler textos e principalmente a amar ler livros. Quando consegui ler meu primeiro livro sozinha com nove anos, eu chorei de emoção e, de lá até hoje, nunca parei de ler. O livro foi Memórias de Emília do autor Monteiro Lobato.

Os livros que tem na escola são de doações, nunca vi nada novo naquele canto que chamam de biblioteca, só coisa velha e caindo aos pedaços, mas mesmo que no livro estivesse faltando uma página ou estivesse com a capa descolada eu lia o título e se me interessasse eu levava para casa.

Um dia ganhei alguns livros que a professora lia para seus filhos quando eram crianças.

- Maíra, é lindo ver a sua paixão pela leitura. Li muitos livros para os meus filhos quando eles eram pequenos e, hoje em dia eles adoram ler, assim como você. Agora que estão grandes e estudando na capital, alguns livros ficaram jogados em casa e eu não poderia doa-los a ninguém que não fosse você. Espero que fique feliz e leia bastante. Disse Reginalva.

Nesse dia eu fiquei muito feliz! Voltei para casa dando pulos de alegria, ali naquela sacola que havia acabado de ganhar, tinha livros que nunca vi na biblioteca da escola.

Muito cansada do longo caminho percorrido da escola até minha casa, com fome e com a cabeça ardendo por causa do sol que brilha sem piedade, entrei em casa, procurei um copo para colocar um tico de água e tentar matar minha sede. Fiz isso, depois olhei para o fogão e vi que lá tinha uma panela de farinha cozida e um pouco de feijão, que por conta da seca, estamos dividindo grão em grão já tem quase uma semana. Coloquei uma colher de farinha e alguns grãozinhos de feijão no meu prato. Ao lado do fogão, eu almocei em pé e com pressa. Queria muito abrir a sacola de livros e descobrir tudo que tinha dentro. Mainha me viu almoçando, disse oi e pediu que eu limpasse o terreiro, pois havia ventado muito a noite e encheu a parte de trás da casa de sujeira. Fiquei desapontada com a ordem que acabara de receber, mas fiz assim mesmo.

Quando terminei meu serviço, em silêncio guardei a vassoura atrás da porta e fui pisando nas pontas dos pés para dentro de casa, afim de que mainha não percebesse e me pedisse para fazer algo mais. Sentei no chão da sala que é o mesmo cômodo que chamamos de quarto e também de cozinha. Na minha casa não tem paredes por dentro, só as de barro e madeira que seguram o telhado. Comecei a tirar os livros de dentro da sacola, tinha As Reinações de Narizinho, Caçadas de Pedrinho, O Saci, tinha também um livro que nunca vi na vida, mas já tinha ouvido a professora comentar na sala de aula o nome é Harry Potter e a Pedra Filosofal. Encontrei também, um livro cujo o nome de autor é muito difícil, William Shakespeare, esse escreveu Romeu e Julieta. A cada livro que tirava da sacola eu ficava mais surpresa, sabia que eu iria me apaixonar por todos.

Sentada no chão, eu fiquei por horas lendo o primeiro livro que escolhi. A história era envolvente demais, um amor proibido, famílias rivais que moravam em Verona, cidade onde Romeu e Julieta se conheceram e se apaixonaram.

Quando me dei conta, painho entrava pela porta e o céu estava começando a escurecer. Nós não tínhamos o hábito de tomar banho, isso é um luxo para quem mora no sertão e que está enfrentando uma seca há anos. Ele trocou a roupa da lida pela roupa de dormir, e quando me dei conta, mainha estava esquentando o resto do almoço para servir a painho na janta. O Mata Sede havia acabado de chegar com painho. O jegue ficou ali amarrado no pedaço de pau que painho fincou no chão seco. Ainda não sei porque ele amarrava o Mata Sede. O coitado nunca teria forças para fugir para muito longe e ainda mais de barriga vazia e a língua seca, mas era o patrimônio de painho e ele se sentia no dever de zelar pelo bicho.

Painho jantou o pouco que pode e dividiu o resto com a família, todos ali ainda estavam com muita fome e um pouco de sede, mas quando dormíamos tudo passava e acordávamos logo cedo para dar continuidade a nossa sobrevivência. Minha vontade era de continuar lendo Romeu e Julieta, queria muito saber como a história ia acabar, mas eu não tinha condições, em casa não havia luz, só um restinho de vela que mainha guardava para ocasiões de mais necessidade, não tive outra escolha, deitei e dormi, mas louca para ver a luz do dia.

Amanheceu e eu percebi que a noite toda ventou muito, toda a sujeira que eu havia varrido do terreiro, parecia que tinha voltado em dobro. Como já estava no horário de ir para escola, disse a mainha que quando chegasse limparia tudo.

Naquele dia o céu estava diferente, tinha muitas nuvens grandes e um pouco cinzas, mesmo assim ninguém ali tinha esperanças de que cairia alguma água do céu.

Quando cheguei a escola, fui correndo em direção a minha professora, queria muito dar um abraço forte nela. Acho que até hoje, ela não tem noção do quanto me fez feliz com aqueles livros que me deu.

Como acontece todos os dias, tivemos aula, comemos, bebemos água e voltamos para casa. Inacreditavelmente o céu estava ficando cada vez mais cinza e não foi tão sofrido caminhar a luz do dia. A ventania continuava, era forte e levantava uma nuvem de poeira que fazia com que toda a hora a gente engasgasse.

Ao chegar em casa, vi que não tinha comida no fogão e nem água no balde para matar a sede. Mainha que estava com minha irmãzinha no colo, me disse chorando que teríamos que esperar pela caridade de algum vizinho, painho e o Mata Sede tinham ido ver se alguém lhe dava um pouco de farinha.

Depois de muito tempo, painho chegou com um saquinho de farinha que alguma alma caridosa pelo caminho lhe deu.

Com a água e a farinha que painho acabara de trazer, mainha fez o jantar. A relação de painho com mainha era diferente do Romeu com a Julieta. Meus pais não se olhavam nos olhos, estavam sempre de cabeça baixa, com olhar entristecido e envelhecido por causa do sofrimento vivido durante muitos anos. Já o Romeu olhava para Julieta como nós do sertão olhamos para um copo limpo e cheio de água, sabendo que ali há vida e esperança.

Enquanto mainha cozinhava a farinha eu lia mais um pouco do livro. A cada linha eu me imaginava em Verona, andando pelas ruas e olhando as pessoas na praça, a cada palavra que meus olhos conheciam eu esquecia do meu estômago vazio, foi assim até painho soltar um grito de VIVA! OBRIGADA PADIN CÍCERO. OBRIGADA SÃO PEDRO PELA A ÁGUA QUE AGORA CAI DO CÉU.

Corri para porta querendo ver a chuva. Era cada pingo d’água enorme, nós todos não resistimos, fomos para o terreiro e deixamos aquela água cair sobre nossos corpos, que sensação maravilhosa, que noite feliz. Toda aquela terra impregnada no corpo e na roupa escorria junto com a água. Pela primeira vez vi painho sorrir e olhar para mainha com os olhos nos olhos dela. Pela primeira vez nossa família toda estava feliz, até o Mata Sede parecia estar muito contente.

Depois daquele banho de chuva que nunca vou esquecer, nós entramos, pegamos uma toalha velha e nos secamos, comemos a janta e fomos dormir com a alma lava e o coração cheio de esperanças.

Em um momento da noite eu acordei assustada com o barulho de um trovão, não estava acostumada com a chuva. Fiquei com um pouco de medo e fui espiar do lado de fora para ver a intensidade da água que caia do céu e, notei que ainda estava muito forte. Chovia sem parar e o vento ao invés de levantar nuvens de poeira, carregava tudo que estava jogado no chão. Voltei a deitar. Quando amanheceu a chuva ainda continuava forte, não dava para irmos a escola.

Muito vento e muita chuva. Choveu a noite toda, o dia todo e a felicidade estava virando aperreação, pois o vento só aumentava e com ele a água também. Cada vez chovia mais dentro de casa. O telhado parecia que não ia resistir por muito tempo naquelas condições. O almoço e a janta que comemos foi o resto do resto do que comemos ontem, quase nada. A noite chegou e a chuva não parou. Todos nós fomos dormir aperriados, mas como sempre usávamos o sono para esquecer da dor da fome, nessa noite além da fome, tínhamos que esquecer a preocupação de que algo pior aconteceria.

No meio da madrugada um barulho muito forte atingiu nossa casa, todos nós acordamos assustados e corremos para ver o que tinha acontecido. Ao chegarmos na porta vimos que o carrinho de mão do vizinho havia voado com o vento e bateu no Mata Sede que caiu duro na parede da casa. A cena era horrível, a magreza, desnutrição e a velhice precoce do jegue fez com que a pancada fosse suficiente para tirar-lhe a vida.

Nesta noite, perdemos o Mata Sede!

Ele era nosso meio de transporte, nossa esperança de alguns baldes de água, o companheiro de lida de painho e o patrimônio pelo qual ele zelava muito. Não vi nenhuma lagrima escorrer dos olhos de painho, não deu tempo. Quando percebemos o vento estava levando o telhado da nossa casa e mainha gritava para cada de um de nós pegarmos as coisas mais importantes. Eu não tive dúvida, catei a minha sacola de livros, enfiei embaixo do braço, ajudei mainha pegando no colo minha irmã mais nova e saímos correndo em busca de abrigo. Andamos muito pela chuva, o vento empurrava a gente para trás. Fomos rumo a estrada que leva ao centro da cidade e por sorte um carro passava pelo caminho, era o vizinho que morava próximo do açude. Ele reconheceu painho e ofereceu ajuda. Entramos na caminhonete velhinha que ele tinha e que coube toda nossa família. Painho perguntou a ele se poderia nos levar até a cidade, pois a minha voinha, mãe de mainha morava lá.

Chegamos na casa humilde de voinha, painho desceu do carro e bateu na porta. Ela meio sonolenta abriu e viu que era a gente, levou um susto e começou a gritar para que entrássemos.

Ela queria saber o que tinha acontecido e se havíamos nos machucado? Mainha contou-lhe sobre os ventos, o telhado voando e da morte do Mata Sede. Voinha desatou a chorar, mas se recompôs logo. Mulher simples e viúva, ela vivia da aposentadoria do meu falecido voinho. Morava sozinha no centro da cidade. Não gostava de saber que a nossa família passava necessidade na roça e já tinha falado várias vezes com mainha para morarmos mais ela. Painho que não queria, não achava justo dar trabalho a sogra. Não tiro a razão dele, mas penso muito nos dias difíceis que vivemos sozinhos na nossa casa, muitas vezes sem água nem comida.

Naquela noite dormimos mais tranquilos, a chuva ainda era forte, porém os ventos foram diminuindo. Quando acordamos de manhã, ainda chovia, mas era mais fraco, não tinha mais ventos. Voinha ofereceu um gole de café preto para gente e um pedacinho de pão. Como eu ainda não tinha condições de ir à escola, resolvi pegar meu livro e terminar de ler a história de Romeu e Julieta. Infelizmente com a chuva, os livros ficaram molhados nas bordas, mas ainda dava para ler. O tempo passou muito rápido. A hora do almoço já tinha chegado e voinha ofereceu o que sobrou da janta do dia anterior. Comemos tudo, estávamos esfomeados, coitada de voinha, até se assustou. Os dias foram passando, já não chovia mais e painho cheio de esperanças para voltar para casa. O que ele tinha na pequena lavoura, com a ajuda das águas vindas do céu, se desenvolveram e ele pode colher e vender. Com o dinheiro que conseguiu, arrumou o telhado e assim voltamos para casa, ouvindo as palavras suplicantes voinha para que ficássemos na cidade que ela nos ajudaria, painho agradeceu e disse que não poderia aceitar. Por mais dificuldades que painho enfrentava para sustentar sua família, infelizmente o orgulho morava no seu coração, ele se colocava na posição de homem responsável pela família e ponto, ninguém conseguia mudar isso. Mainha, muito passiva, obedecia a painho, sempre de cabeça baixa e chorosa. Não havia como negar que painho era um homem do sertão, orgulhoso e cabeça dura.

Voltamos da cidade para casa a pé com o sol estalando no lombo da gente.

Em meio àquela situação toda, eu só conseguia pensar nos Montecchios e Capuletos, Romeu e Julieta. Nesse dia eu entendi algo muito importante, os livros aliviam e curam nossa alma. Mesmo com toda turbulência, eu fui capaz de compreender que é pela leitura que um dia conseguirei mudar rumo da minha família. Com quinze anos, entendi que eu preciso estudar e compreender cada vez mais esse mundo, para que eu possa me virar e ajudar a minha família a sair da miséria. No meio da chuva salvei o que mais importa na minha vida e não me arrependo um segundo sequer.

Cintia L Santos
Enviado por Cintia L Santos em 22/10/2017
Código do texto: T6149597
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