ASSÉDIO OU ELOGIO?

Retornando da escola, próximo das 12 hs, a jovem caminha apressada, focada, mentalizando as próximas horas: a) banho, b) preparo do almoço, c) ida ao trabalho (estágio remunerado). Ao passar diante de uma lanchonete, ouve uma voz:

"- Que beleza!!!!! Eu daria um milhão pelos seus pensamentos."

Ela se apruma, aperta o passo e resiste ao desejo de encarar, furiosa, o "cafajeste". Ao dobrar na primeira esquina, chega em sua casa. Entra bufando, "p" da vida com aquele atrevido. Aquela voz continua ecoando em sua mente. Segue sua rotina, tentando afastar do pensamento aquelas palavras. Mas nem embaixo do chuveiro consegue. Ao se enxugar, vai remoendo o fato, revive cada passo antes e depois de passar diante da lanchonete. Já não sente mais raiva. Está mesmo é curiosa. “Quem será o engraçadinho? Tinha uma voz tão bonita, sonora, forte”. Almoçando, procura revirar sua mente, buscando imagens do momento em que passou diante da lanchonete do "Seu" Antonino, do qual se recorda desde a infância, não muito distante. Consegue resgatar imagens fugidias, embaçadas. Algumas pessoas estavam na entrada, mas ela não consegue vislumbrar rostos, não consegue identificar quem poderia ter se dirigindo a ela, lançando o gracejo bobo. Ela pensa: "Com certeza é um desconhecido, um imbecil que não conhece meu pai e meus irmãos." Estes são praticantes de artes marciais e muito conhecidos no bairro. Ela escova os dentes automaticamente, está tão absorta em pensamentos que pela primeira vez esquece o tubo de creme dental fora do armário. Abre uma bolsa, confere o conteúdo, em especial o Bilhete Único, pega chaves e agasalho, saindo célere. Já estava um pouco atrasada. Saindo de casa, o ponto de ônibus era em sentido contrário à lanchonete do Seu Antonino. A voz, cada vez mais nítida, ecoa em sua mente e ela começa a mentalizar rostos. Os primeiros que lhe ocorrem são de atores famosos, interpretando tipos ordinários, cafajestes, como sua avó costumava denominar esses desqualificados. O ônibus chega, ela embarca e nem olha para o motorista ou qualquer outra pessoa. Em cada homem no ônibus ela imagina que poderia ser um tarado em potencial. Aliás, com as recentes notícias de abusadores nos transportes públicos, sempre que adentrava aos ônibus ou vagões do metrô já fica alerta, pronta para reagir, com os ensinamentos do pai e irmãos. E nesse dia, em particular, já está entrando na estação do metrô, sente o sangue ferver de novo, seus olhos lançam chispas. Ao entrar no vagão, olha furiosamente para os lados, buscando detectar algum possível tarado. É quando lhe vem à lembrança algumas discussões em casa, quando ela dizia que também gostaria de praticar artes marciais e seu pai energicamente se opunha, dizendo que na academia tal tinha muitos homens e "nenhuma moça de família". Ela contra argumentava, dizendo que "mulheres praticam e tem também aquelas que gostam de assistir aos treinos", etc etc etc. Mas eu pai era categórico, encerrava o assunto afirmando que "apenas filhas, esposas e noivas eram aceitas" na academia que ele frequentava a tantos anos. E com desprezo, dizia "o resto é Maria Chuteira, procurando encrenca, tentando engravidar para depois exigir altas pensões de trouxas". Nessas horas a mãe entrava na conversa e mansamente tirava a filha da discussão, tentando apaziguar, antes que a filha chamasse o pai de machista, de porco chauvinista e outros adjetivos. A jovem chega ao escritório onde é estagiária e se entrega de corpo e alma ao trabalho. Seu turno é de 6 horas, das 14 às 20hs. Retorna exausta para casa, focada somente no desejo de poder deitar, fechar os olhos e mansamente dormir. Dia seguinte, cedinho, vai para a escola. Ao passar na frente da lanchonete, relembra o ocorrido e nota que as portas estão fechadas. Ao retornar da escola, decide desvendar o mistério. “Vou passar andando mais devagar, esperando algum gracejo e encarar quem quer que seja”. Ao longe já avista que há pessoas na porta da lanchonete. À medida que se aproxima sente o coração batendo mais forte e o rosto afogueado. Só então se dá conta que ainda está vestindo o blusão e que o sol está quase a pino. Estanca, se desvencilha da mochila e tira o blusão, sentindo-se aliviada. Respira fundo, sente o mormaço e se imagina praia, de biquíni, rodeada de familiares e amigos. Enquanto recoloca a mochila nas costas, sorri relembrando os elogios de amigas e amigos, quando estão nas praias. “Que corpão é esse, Menina”, lhe diziam as amigas. “Então sereia existe”, diziam os amigos. E também as selfies exibidas no Facebook, muito elogiadas por todos. Ela também se dá conta que é comum as jovens postarem suas selfies, ansiando serem recordistas de “likes” e comentários, exaltando a beleza, a exuberância das jovens com seus resumidos biquínis. E até os gracejos de rapazes desconhecidos, tipo “Meu Deus, como você é linda”, “Que perfeição, Senhoooorrrrr”, “Vejam esse bumbum, perfeito, perfeito”, são aceitos e tidos como normais. Desde que lançados por jovens bonitos, “saradões”, com pinta de surfistas premiados. Chegando diante da lanchonete, nenhum comentário. Ela olha para o interior e vê pessoas almoçando, outras em volta da mesa com as travessas de alimentos. O ambiente lhe parece familiar. Entra e procura uma mesa livre. Se encaminha, coloca o blusão e a mochila, enquanto olha à sua volta, para conhecer o lugar. O aroma dos alimentos, o tilintar dos talheres faz com que salive e resoluta, serve-se, sempre lançando olhares à volta, buscando algum possível admirador. Ao voltar para a mesa escolhida, nota que agora, na mesa ao lado, há uma jovem ajeitando a cadeirinha tipo “bebê conforto”. Os seios fartos indicam que está amamento. Nesse momento chega um rapaz, trazendo dois pratos e senta-se ao lado. Nossa jovem aguerrida sente um frio na espinha ao ouvir a voz do “papai fresquinho”. Melhor dizendo: vozeirão. E de imediato reconhece como sendo a voz do “seu galanteador” misterioso. Nossa heroína vai comendo e furtivamente olhando para o casal. Num dado momento seu olhar cruza com os olhos da mamãe, que lhe sorri. Toda mãe sabe que irão elogiar seus bebês e são amistosas. Animada, nossa jovem pergunta: “É menina ou menino? Quantos meses? Qual o nome?” E já está se levantando, para enxergar dentro do bebê conforto. A mãe também se levanta, pega o bebê e responde às perguntas, satisfeita. “Está na hora de mamar, quer ir ao Fraldário comigo? Vou trocar as fraldas antes”. O paizão sorridente diz “Pode ir, eu cuido da sua mochila, daqui não sairei”. E lá se foram as jovens. Papo vai, papo vem, a mamãe comenta que o marido nascera e fora criado no bairro, depois de formado tinha foi se aperfeiçoar no exterior, onde se conheceram e voltaram já casados ao Brasil. A gravidez foi planejada, para o bebê nascer no Brasil. Agora estavam morando ainda na casa ao lado da lanchonete, cujos donos eram os pais dele. Nossa heroína está pasma: “ele é filho do Seu Antonino”. Fica sabendo que o rapaz frequentou a mesma escola que ela e mais: tinham a mesma idade. Que coincidência, direis vós. Realmente, responderei eu. Na sequência, voltam para a mesa e conversando descobrem que estudaram na mesma escola, em períodos diferentes. Mas o rapaz conhecia os irmãos dela, tinham jogado nos mesmos times da escola, etc etc etc. Enfim, não eram “amigos de infância”, mas já se sentiam como se assim fosse. Em dado momento a mamãe deixa a criança com o papai e vai ao banheiro. Nossa heroína se enche de coragem e conta o episódio do dia anterior. O rapaz conta que no dia anterior – como de costume - ele e a esposa estavam sentados naquela mesa pertinho da porta de entrada e que ele estava se dirigindo à própria esposa. E que sua esposa era muito distraída e que ele costumava brincar com ela, provocando-a ao dizer:

"- Que beleza!!!!! Eu daria um milhão pelos seus pensamentos."

E arremata: “Dificilmente eu e minha esposa sentamos aqui, mais ao fundo. Perto da entrada é mais arejado. Hoje foi uma das raras exceções. A mamãe retorna à mesa trazendo a sogra e o sogro e daí pra frente foi muito “papo recordação”. E ficaram amigos para sempre.

“Aqui termina nosso conto, quem quiser que conte outro.”

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Juares de Marcos Jardim
Enviado por Juares de Marcos Jardim em 18/10/2017
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