Conto das terças-feiras – Lobas do Mar

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza (CE), 17 de outubro de 2017

Três mulheres, treze filhos para cuidar, apenas uma casa para morar. Esta é a história de três viúvas de pescadores do alto-mar, desaparecidos em suposto naufrágio nas costas do Ceará.

Com a mesma coragem de seus falecidos maridos, as três mulheres enfrentavam o mar, manso ou raivoso, para arrancar-lhe o sustento da família, constituída de elas três e mais treze componentes, ou seja, quatro filhos de dona Alice, a de mais idade, três de dona Maria de Lourdes e seis de Albertina, a mais jovem do grupo. São crianças e adolescentes com idade variando de seis a quinze anos.

Sempre que as três se juntavam em terra firme era para falar do naufrágio do barco onde os maridos trabalhavam. Os corpos e o barco desse presumível naufrágio jamais foram encontrados, e já faz mais de quatro anos. Sabe-se que todos que trabalhavam, no barco Esperança eram avulsos. Para evitar vínculo empregatício os patrões não costumavam registrar esses pescadores, que trabalhavam na informalidade.

A dificuldade de provar a presença dos maridos no hipotético naufrágio e a impossibilidade de se encontrar os cadáveres para registro do assentamento da morte, agora presumida, deixaram as viúvas sem a indenização por acidente de trabalho e sem pensão da previdência social. A solução para o sustento das famílias foi se juntarem e assumirem aquilo que faziam, algumas vezes, em companhia dos maridos. Eles, quando não estavam trabalhando para terceiros, pescavam no paquete do Arildo, companheiro de Alice.

Os comentários sobre o naufrágio variavam de crime premeditado, cometido pelo dono do barco para não pagar o que devia aos embarcados ou que eles teriam sido atacados por piratas e levados para a Bolívia como mão de obra escrava, o barco trocado por cocaína. Falava-se também que o barco e a tripulação haviam sido abduzidos por extraterrestes, invencionice de pessoas pouco letradas. Sem pista do acontecido e precisando urgentemente de solução para a situação das três viúvas, elas resolveram enfrentar a vida juntas.

Essas mulheres não pretendiam percorrer a degradação do vivido e a busca constante pela sobrevivência, fatores impingidos aos que se aquietam diante das tragédias. Elas teriam que somar forças em prol da sobrevivência, da resistência e de realizações que as habilitassem a um novo amanhecer. Não têm mais problemas com moradia, pois se juntaram e foram morar na casa de dona Alice, propriedade transmitida à família do ex-marido segundo a tradição do direito nato de uso, de pai para filhos e netos, já que essa propriedade se encontrava assentada sobre terreno de marinha e de propriedade da União, definido a partir da linha da preamar.

— Vamos arranjar dinheiro para consertar o paquete do meu finado marido, disse dona Alice, um ano após o desaparecimento do barco Esperança.

Dona Alice era a que mais conhecia da arte de pescar, aprendeu na vivência e no trabalho com o ex-marido. Conhecedora dos movimentos do nascer e pôr do sol, do voar dos pássaros, da distribuição das nuvens, da direção e força dos ventos que lhe permitia indicar os momentos de sair mar afora e de recolher a embarcação. Conhecia também, pelo sabor da água, mais ou menos salgada, e pela sua temperatura quais os peixes presentes naquela área.

—Tudo isso me ensinou o meu finado marido, falava dona Alice, confiante. Essas qualidades lhe permitiram se autopromover a mestre proeiro, remador da proa de embarcação pequena. As outras duas amigas eram ajudantes.

— Não podemos continuar nessa miséria, vender picolé na praia não dá para sustentar sete pessoas, afirmou Albertina, preocupada em ter que sustentar seis filhos e ela mesma, vendendo coco aos domingos, na areia.

— O dono da casa onde moro pediu que eu saísse, pois devo doze meses do aluguel, falou tristonha Maria de Lourdes.

Depois de muito trabalho e ajuda de amigos pescadores, o barco foi consertado e rebatizado com o nome de Lobas do Mar. Içada a vela do paquete, ainda de madrugada, as três viúvas se lançaram ao mar. Cantando e recebendo os aplausos dos pescadores que também se lançavam ao mar naquela hora da madrugada, as valentes mulheres tinham consciência da árdua tarefa e do perigo que iriam encontrar pela frente.

— Não vamos ter medo, já enfrentamos muitos perigos em nossas vidas e agora é tudo por nossa conta, falava gritando dona Alice, a mais experiente do grupo. Vamos encontrar gente que vai tentar tirar a nossa coragem, completava eufórica.

— Vamos pensar nos nossos filhos que ficaram em casa. Temos que trazer pelo menos a comida para eles. Chega de vê-los passarem fome, falava Maria de Lourdes, tentando encorajar as demais companheiras.

O paquete, a primitiva embarcação adaptada aos dias de hoje, agora de propriedade das três, era propulsionada a vela e foi construída com casco de madeira em forma chata, forrado internamente com isopor, com convés medindo seis metros de comprimento por um e meio de largura. Pequeno porão, contendo gelo, podia ser acessado por escotilha. Os apetrechos para a pesca eram a linha e os anzóis com a chumbada e a isca.

As mulheres carregavam água potável acondicionada em um tambor de plástico, para um dia de jornada, esperavam retornar ao final do entardecer. Era a pescaria do “ir e vir”. Adentrar o mar até quarenta quilômetros, se as condições do tempo permitissem. Não levavam equipamentos de proteção individual, contavam com proteção de Deus, como dizia Maria de Lourdes:

— Que Deus nos proteja, nos leve e nos traga de volta, para a alegria de nossos filhos.

— Amém, responderam as outras ao mesmo tempo.

— Ao trabalho, falava firme Albertina, a mais preocupada delas, pois tinha sete bocas para sustentar e cinco dos filhos já em idade escolar. O seu esforço era para que os filhos não tivessem a mesma profissão do pai, tradição na família dele.

Aquele dia foi mágico. A viagem foi normal. Pegaram poucos peixes, mas o suficiente para elas, filhos e um pouco para trocar por mantimentos na venda do seu Raimundo. O mais importante é que agora elas são independentes, proprietárias e patroas delas mesmas, não será preciso dividir com ninguém o produto da pescaria do dia. Cada dia será de aprendizado e progresso.

No retorno, muita gente espera a chegada do paquete à praia. Alguns impacientes andam de um lado para o outro, principalmente os filhos e demais parentes. Quando de longe avistaram a vela colorida e o nome Esperança, os sorrisos se alargaram, foi uma alegria total. Para levar o Esperança até a areia onde ele ficará até o dia seguinte, pescadores e populares fizeram questão de ajudá-las, enquanto outros as aplaudiam.

Fora a primeira vitória, muitas outras haveriam de ocorrer para aquelas calouras, mas já experientes lobas do mar.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 17/10/2017
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