A imagem dos sonhos II: olhos abertos não abortam sonhos

A essa altura Fabrício já tinha um carro. Tinha também quinze quilos a mais. Logo depois que conseguira um emprego promissor naquela empresa promissora, ele optou por ir trabalhar de carona no carro de um colega e dividir a gasolina, aposentou sua bicicleta e ao completar um ano e sete meses foi promovido a supervisor, decidiu comprar seu primeiro veículo. Todos diriam que ele vinha levando uma vida de evolução.

Há quase quatro anos estava empregado e a pausa para o cafézinho havia se tornado a xícara com a primeira refeição de Fabrício, refeição que ele fazia enquanto andava pelos corredores ou enquanto folheava os relatórios sobre a mesa em sua própria sala sem janelas. Ele não lembrava quando teria sido a última vez que havia tomado um café da manhã de verdade, por outro lado, não podia esquecer o incômodo que sentia no estômago, mas com algum esforço e comprimidos recomendados por um farmacêutico ele conseguiu ignorar isso também, pelo menos até o dia em que após mais uma xícara inofensiva de café, se viu a suar frio e a sentir fortes dores de cabeça. Foi às pressas para o hospital e depois de ser atendido e entrevistado pelo médico, recebeu a repreensão que precisava, pois além de uma alimentação desleixada, o promissor Fabrício vendeu todas as três férias que teve direito e não participava de nenhuma outra atividade regular há muito tempo. O médico, por sorte, era um homem experiente e realmente disponível, recomendou ao rapaz que resgatasse algo que fosse pessoalmente terapêutico e o transportasse de volta para dentro da própria vida.

— Filhos?

— Não tenho.

— Amigos presentes? Uma esposa?

— Alguns chegados que cuidam da própria vida, Doutor. Cerveja na sexta, TV no sábado e domingo. Nenhuma esposa ou relacionamento sério.

— Isso é tudo?

— Isso é tudo muito pouco, admito, mas o trabalho ainda é estressante demais e não sobra energia pra cuidar de outras coisas.

— Ah... Se você olhar bem, a vida é rica quando a gente pode se "estressar" por diversos motivos, só que quando os motivos nos dão prazer além do prazer e nos fazem produzir bons hormônios, nossa energia é renovada e toda bagunça ganha sentido único! Na próxima oportunidade, tire suas férias — se não quiser adoecer de verdade. Resgate experiências a serem vividas em quanto a vida segue, pois ela não vai parar, pra você começar a viver!

Passada a dor no estômago, Fabrício, sentiu doer a consciência e antes que esquecesse as palavras daquele médico atípico decidiu tirar férias, comprou uma nova bicicleta e passou metade dos dias livres na casa de sua tia, a resgatar presença, satisfação e simplicidade em telas em branco e com as diversas tintas a depositar as diversas nuances incognoscíveis que o tempo havia acrescentado, descobriu na ponta dos pincéis que inspirações reais não morrem e que muitas imagens ele ainda formaria. Sua pausa também o fez desejar pintar novas obras em si, mesmo sem precisar pausar, tais obras dariam novos limites aos seus muros internos, essas visões jamais se apagariam ou seriam cobertas por anúncios de borracharia, ele ainda poderia experimentar e colecionar formas coletivas de expressar. Assim, ele seguiu, retocou, renovou, sentiu e pintou em seu ser quadros vivos e genuínos de amor que transcendiam quaisquer camadas.

[Este texto é continuação de outro chamado "A imagem dos sonhos" escrito em 24/04/2017]