Plano alto

Aquele era o andar perfeito para ter a real noção do que estava acontecendo. Não existiam mais cores, não existiam mais ideias e muito menos espectros. A única coisa que restou naquele dia, foi uma nação coberta pelo manto do ódio e sedenta por um pouco mais de ilusão.

— Senhor. — Disse um sujeito magrinho de roupa social, daqueles que de longe já se sabe que é apenas mais bajulador. — Se sairmos agora, conseguiremos pegar o helicóptero.

— Me deixe contemplar essa obra de arte, meu caro. — Respondeu um senhor gordo de cabelos brancos e ralos, enquanto saboreava seu último Marlboro. — Esta é a melhor visão que tive em todos esses anos de mandato.

— Mas senhor, precisamos nos esconder, eles já estão quebrando o primeiro portão.

— Me diga, Gomes. — Fumaça e ar se misturam em uma dança selvagem. — Como podemos nos esconder do inferno estando nele?

Um homem de aproximadamente dois metros de altura surgiu do outro lado da sala, carregando uma poltrona emborrachada. De um corredor logo atrás, uma voz masculina parecia se aproximar enquanto tagarelava ao telefone, devia estar pedindo para a esposa relaxar e que logo estaria em casa.

— E então, meu querido, eu perdi muita coisa? — Perguntou o rapaz que falava desligando o telefone. Ele tinha uma elegância hereditária, como se tivesse sido treinado a vida toda para usar aquele terno e falar do jeito pomposo da profissão. — Não queria me atrasar, mas você mais do que eu, deve saber como é ter corações dentro do gabinete, hein?!

Os dois gargalharam e se abraçaram. Da janela do quinto andar podiam ver em sua totalidade a horda que avançava contra os muros improvisados em frente à praça. As armações de ferro postas pela empresa de um sobrinho do senador, haviam suportado mais do que as três horas previstas, era sinal de que o dinheiro investido ali foi bem gasto, mas de quem era o dinheiro?

Dezenas de pessoas começavam a avançar pela grama e logo mais estariam quebrando o seguro muro de ferro.

— Senhor, você sabe que eu sempre prezei pela sua segurança e agora não teria de ser diferente, me escute pelo menos essa vez. — Disse o puxa saco magrinho. — Vamos sair do prédio, o helicóptero só está esperando a gente.

— Você deseja sair daqui, meu jovem Lucas? — O senador gorduchinho sorriu quando recebeu como resposta apenas um sinal negativo do rapaz ao seu lado. — Viu?! Todos nós queremos ficar aqui, se deseja partir, pode ir sem mim, mas antes, me sirva mais uma dose, por favor.

— Afonso, siga as mesmas ordens do senador e me sirva uma dose também. — Quem estivesse na sala, nunca iria notar o imóvel Afonso, que apesar do tamanho, tinha uma disciplina militar para seguir ordens, e ficar parado esperando, era a sua especialidade.

— Como deixamos isso acontecer, Lucas? — Perguntou o Senador. — Eles estavam sempre aqui no nosso bolso, era só colocar a frase de um lunático qualquer da câmara que eles se enchiam de porrada durante meses, o que houve?

— Eu sempre alertei meus companheiros, caro senador. Todos viram como eu avancei contra a igreja e os resultados que eu tive. Como era fácil lidar com tudo isso, era só dizer em qualquer lugarzinho da internet que podíamos pensar em conversar sobre aborto ou qualquer coisa desse tipo, que uma legião de pessoas nos abraçavam, lembra daquele dia no Rio?

— Lembro sim. — Uma gargalhada rouca saiu entre a fumaça do Marlboro. — E mesmo assim eles estão aqui na frente. Acho que você aprendeu isso comigo não foi?! Eu nunca fui de usar essas coisas que vocês usam porque na minha época era bem mais simples. Só bastava levantar um jornal com a foto da cabeça de policial crivada de balas, dizendo que o presidente vermelho era culpado daquela morte e todos aqueles trabalhadores levantavam suas ferramentas para mim.

— Isso soou meio estranho, Senador. — disse Lucas com ironia. — Quem o conhece, sabe muito bem sobre aquele vídeo vazado no seu gabinete.

— E o que isso importa agora? — O senador agradeceu a nova dose e a tomou em um único gole. — Viu o que aconteceu no Pará? Todos os seus companheiros queimando dentro da prefeitura? E viu como a população reagiu?! Porque eu me importaria com uma pederastia na minha sala a essa altura?

— Realmente, senador. — Lucas se levantou, colocou a mão no bolso e tirou o celular que estava tocando, estava escrito amor na tela. Ele abriu a janela e atirou na tentativa de acertar alguém na multidão que já forçava o segundo portão. — O que o presidente acha de tudo isso?

— O mesmo que nós achamos, porém, dessa vez o comandante foi o primeiro a abandonar o navio. Ele ainda acredita que os brasileiros que vivem fora daqui vão lhe receber da mesma forma que receberam o rapaz sorridente que deu com a língua nos dentes.

— Aquele maldito filho da puta!

— Não precisa se aborrecer, meu rapaz. Se não fosse ele, seria outro, e se não fosse outro, alguém de dentro do povo descobriria. Nós tornamos o produto final do que mais temíamos. A diferença entre ganhar presente e os tomar já era tão esdruxula quanto roubar um real ou um milhão.

— Ou um bilhão, não é senador? — Lucas esboçou uma risada banhada em sarcasmo, enquanto ia até o balcão encher seu copo.

— Viu como não existe mais diferença? E sabe de quem é a culpa de toda essa falta de percepção?

— De nós mesmos!

— Não, pequeno Lucas. — O senador deu um grande suspiro já sentindo que a multidão fazia tremer, mesmo que de leve, todo o prédio. — O povo.

— Entendo.

Outro gole.

Outro gole.

A rampa do Planalto branco já havia sido tomada, enquanto garrafas de molotov ejaculavam chamas na parte superior do prédio.

— Senhor, por favor, ainda dá tempo se corrermos. — Havia uma grande tiara de suor na testa do Puxa Saco, que tremia enquanto olhava pela janela abaixo. — Eu tenho família, eles precisam de mim.

— Eu sei. Sua família está aqui em baixo subindo com as outras, inclusive com a minha e a do senador Lucas. Eles precisam de nós e é isso que vão ter quando chegar aqui, certo, Lucas?!

— Eu jurava que ia dar tudo certo. — comentou Lucas, com uma certa tristeza na voz. — Mesmo quando tudo isso começou, lá em 2018, quando finalmente conseguimos tirar de jogo aquela cria de Hitler. Tudo parecia caminhar bem, as peças já estavam alinhadas, as camisas já estavam vestidas e o nos bastidores tudo acontecia como tinha que ser.

— Foi até engraçado você mencionar isso. Ontem mesmo, meu vizinho de condomínio veio falar que o país iria mudar agora, ele já sabia como votar e sempre ganhava as discussões na internet. Ele me abraçou e disse que fazia parte de um grupo com doze mil pessoas que me apoiavam e me defendiam e garantiu que não ia deixar o comunismo transformar o Brasil em uma nova Cuba. Eu queria perguntar quando eu pedi defesa, mas o meu instinto profissional cantou mais alto e eu retribui o abraço com um sorriso.

As grandes janelas de vidro já haviam sido estouradas e uma onda de corpos entrava prédio. Algumas pedras já acertavam o quinto andar, uma delas por pouco não acertou Afonso que apesar da aparência sonolenta, estava avido para esquivar delas.

O cenário apocalíptico serviria como inspiração até para Dante, caso estivesse vivo. O prédio, que há pouco, era branco, agora se cobria de um cinza carvão, ladeado de pequenas flamulas amarelas que dançavam com as chamas vermelhas. O prédio ardia cada vez mais. A conversa do Senador e Lucas já havia sido abafada pelo grito fervoroso da massa única que invadia o prédio.

Os dois homens levantaram, sorriram e se abraçaram.

— Algum ultimo conselho, senador? — Perguntou o jovem Lucas.

— Não vamos para um lugar tão diferente do que esse, portanto, faça a mesma coisa que sempre fizemos aqui, faço-os acreditar que sempre estão certos.

Fabio Darren
Enviado por Fabio Darren em 12/10/2017
Código do texto: T6140378
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