O IDOSO DECAI OU FLUTUA?

Ali sentada em frente à janela, esgueirando-se entre os móveis, Sara tentava expor seu corpo de oitenta e dois anos, aos raios de sol que lhe trariam a complementação dos comprimidos de vitamina D, algumas vezes esquecidos de tomar. Sua visão, um pouco embaçada, pelo atraso na cirurgia de catarata, buscava, ora belas árvores da praça em frente ao seu prédio, ora o azul límpido do céu, iluminado pelo forte sol daquela manhã.

Um lindo pássaro veio pousar em um galho bem próximo a sua mão, o que deixou Sara surpresa pela coragem dele e feliz com o seu belo canto. Uma cumplicidade logo nasceu entre os dois. Para ela, sem ter muito com quem conversar, aquele pequenino ser parecia ter sido enviado por Deus, para lhe dar uma oportunidade de ser ouvida. Fique aí onde está meu amiguinho, preciso muito conversar com você. Por coincidência ou não, o pássaro parou seu canto e voltou-se todo para a idosa, que logo deu início ao monólogo:

“Você é igualzinho ao que fui - irrequieta e levando minha alegria de viver por todos os locais onde pousava minha presença. Não havia tristeza que tirasse o sorriso de meu rosto, nem melodia que deixasse meu corpo parado, pois adorava dançar. Sempre pronta a ajudar pessoas, não permitia ninguém triste e deprimido perto de mim, sem que lhe injetasse logo uma boa dose de otimismo, ou conselhos que pudessem solucionar problemas.

Através dessa forma de ser, fiz muitos amigos e admiradores. Vivi grandes amores e realizei muitos sonhos, sem nunca me preocupar com a passagem dos anos. Que viessem as rugas e cabelos brancos, eu os aceitaria de bom grado, pois a imagem que sempre via refletida nos espelhos, não me deixava dúvidas de que nem uma idade prolongada, poderia me trazer grandes perdas.

Fui assim caminhando ao longo dos anos sem nenhuma preocupação com meu físico, até comemorar meus oitenta anos da maneira como sempre sonhei, sozinha em uma praia, fazendo meu bolo de areia e nele entrando como uma grande vela, vestida num belo biquíni, a comemorar meu aniversário, como se estivesse em uma grande festa.

Naquela época, estava no nordeste, onde fui passar uma boa temporada com os familiares que havia deixado para trás, após meu casamento aos vinte anos de idade. Quando retornei do passeio para a residência que havia estabelecido por lá, surpreendi-me com uma forte dor no calcanhar. Que poderia ser aquilo? Pois é meu querido pássaro, era o início de outras deficiências naturais da idade, para as quais eu não havia me preparado, nem físico, nem psicologicamente falando.

O que dizer para os cobradores de meu anterior estado mental? Como lhes explicar de minha revolta em não saber aceitar coisas nas quais nunca havia pensado? Como conviver bem com limitações que me impediam de ser como sempre fora? Passei então a conversar com a imagem que o espelho refletia de mim. Olhava minhas rugas, meu cabelo mesclado de branco e os aceitava com a maior naturalidade, mas sempre a perguntar onde ficara minha alegria e estímulo de vida. Sem respostas, ia cada vez mais me deixando envolver pela tristeza que afasta as pessoas e nos leva ao ostracismo e confusão mental.”

Naquele momento, Sara sentiu que Deus havia lhe enviado aquele pequenino ser da natureza que tanto ela amava, como uma luz a clarear seu interior tumultuado por interrogações. Percebeu o quanto havia errado em permitir que a tristeza se apossasse dela e a deixasse vulnerável às fraquezas comuns à sua idade. Entendeu, por fim, que dela, somente dela, poderiam vir as respostas de que tanto precisava. Compreendeu, ainda, que o retorno de seu sorriso, de sua vontade em contornar situações, do brilho de sua presença e estímulos de vida, estavam dentro de si mesma, anestesiados pela amargura em se deprimir e pela saudade de ser quem foi. Sentiu sua forca interior a retornar, reanimando com intensidade, toda sua musculatura alquebrada por pensamentos negativos.

Com as mãos em posição de oração, Sara agradeceu aquele pássaro que, aos olhos dos humanos poderia parecer um ser sem grande significância, mas que trouxera para ela, um profundo esclarecimento de suas próprias falhas, ao trocar a caneta da alegria que por tantos anos escrevera sua história de vida, pela da tristeza e desânimo de viver.

Levantou-se com todo o cuidado para não espantar a linda ave, que parecia ter entendido sua bela missão e agora movia as asas, preparando-se para voar ao infinito. Sara ficou a acompanhar seu vôo até perdê-la de vista. Afastou a cadeira em que estivera sentada e, com uma energia que estava a desconhecer, caminhou com passos firmes para uma nova vida, convicta de que se pode envelhecer e superar qualquer entrave, desde que se conserve a mente positiva e alegre, fazendo das recordações uma força a mais, capaz de flutuar acima de qualquer decadência.

Ercy Fortes
Enviado por Ercy Fortes em 19/09/2017
Reeditado em 19/09/2017
Código do texto: T6119033
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