Dia ruim

O plano era acordar cedo, apesar de ter dormido tarde tentando evitar parte dos açoites. Às 6 da manhã estava no ponto de ônibus indo para a faculdade, onde não teria aula naquela data e deveria estar trabalhando somente ao meio dia.Parecia uma ótima programação para uma mente calejada, sedenta de qualquer distração que pudesse livrá-la de seu dono.

O caminho após descer do ônibus foi meticulosamente traçado. A intenção era o mínimo de pessoas o virem. Uma vez dentro do bosque tudo estaria tranquilo e poderia iniciar a coleta, mantendo sempre a audição atenta.

Observando os mamíferos percebe-se um fenômeno comum em várias espécies: os animais superiores vão à busca de seus recursos, tomando-os para si de várias maneiras distintas. Quando satisfeitos, as sobras ficam para os outros animais menos nutridos e, de uma forma ou outra, incapazes de sustentarem suas necessidades pela própria força.

E quanta maconha eles deixavam como sobra no meio da terra.

A busca durou cerca de quinze a vinte minutos e foi agradável. Ninguém atravessou aquele caminho; havia o frescor do orvalho e o som de vários animais brincando na manhã. Depois de fuçar na terra com um pauzinho conseguiu encher mais ou menos um quarto do ziplock que trouxera no bolso e estava satisfeito. Sabia que alguém já havia passado ali, pois não achou nenhuma ponta. Tudo que recolheu foram pedaços que os inexperientes deixam cair na hora de destrinchar. Mas isso não era surpresa. Aliás, a hora escolhida tinha como fator evitar a presença de outro catador que poderia passar ali a qualquer momento depois das sete.

O próximo passo era conseguir uma seda. O problema seria o horário: ainda era muito cedo e a lanchonete que vende smoking picada estava fechada. Não obstante, várias pessoas já começavam a caminhar pelo campus, iniciando o ritmo cotidiano da atividade acadêmica.

Por alguma razão óbvia, nenhum engenheiro jamais pensou nos seres inferiores que querem passar o tempo se escondendo, com medo dos outros. Qualquer lugar naquele espaço público feito para se sentar era altamente convidativo àqueles que iriam se reunir com seus amigos, onde qualquer um que transitasse a vários metros de distância pudesse vê-los e admirar a alegria de várias vidas jovens desfrutando o frescor das primeiras décadas.

Mas aquilo estava sozinho. Ninguém, dentro ou fora de sua mente, jamais iria querer passar algum tempo com algo tão asqueroso. Os olhares seriam inquisidores. Afinal, o que uma criatura encurvada estaria fazendo àquela hora do dia naqueles bancos, sem ninguém, enquanto qualquer ser inteligente em uma faculdade se prepara para as aulas?

Surgiu a sub-missão:encontrar um lugar para se esconder perto dali até que a lanchonete abrisse. O único lugar que agradou foi a entrada do banheiro do RU, que estaria fechado até as dez e meia. Felizmente, o banheiro estava limpo e não havia cheiro de urina. Infelizmente, ainda assim não dava para se sentar no chão, pois alguém poderia surgir ali e flagrá-lo em aparente total falta de higiene. O melhor era esperar em pé, com a cara enfiada no canto entre a porta e a parede, para que mesmo se alguém fosse lá por engano não pudesse ver quem estava em um lugar tão estranho se escondendo de algo. Isso aliviava um pouco as coisas e era muito melhor que ficar no meio dos transeuntes. Afinal, Ele poderia aparecer e recomeçar a sessão.

A fraqueza não permitiu que seu plano de fuga se completasse. Um cansaço súbito, acompanhado pela dor nas pernas por vários minutos em pé o forçaram a procurar algum lugar para se sentar. Se não dava para fugir de todos os olhares, tentaria diminuí-los. Também faltava só meia hora, depois disso haveria um lugar seguro para se esconder. Acabou entre o ICB 1 e 2, sentado numa muretinha e encostado na parede com a cabeça entre as pernas, para não ver, não ser visto e ouvir o mínimo possível. Finalmente, passados os transtornos, poderia começar os trabalhos.

Caminhou até um estacionamento vazio e distante, em frente à guarita dos seguranças e próximo ao prédio da reitoria, onde trabalharia dali a algumas horas. À primeira vista não parece um bom lugar, mas é. Há quem diga que o bom esconderijo é aquele que as pessoas vêem, mas não percebem.

No canto superior do estacionamento existe uma árvore baixa, com a folhagem formando uma espécie de cúpula rasteira, como uma moita grande e oca. Ali era possível passar horas se drogando, até que a má posição cansasse as costas. Por entre as folhas era possível ver todos os que passavam pelo caminho distante e, curiosamente, percebia-se que nenhum deles prestava atenção naquela árvore. Mas não pense que a desconfiança iria embora tão fácil. Não era apenas por isso que ali era um lugar seguro. Mesmo se o reparassem, não seria possível identificar quem era e muito dificilmente alguém iria querer se aproximar para observar mais de perto algo que opta por um canto tão estranho e degradante.

Pela primeira vez em horas (que pareciam semanas ao se pensar no que se passava e segundos ao se pensar no que se perdia) sentiu um pouco de alívio. O lugar era realmente agradável, com sombra, vento fresco, som de pássaros, o sol da manhã iluminando a paisagem. Poderia retirar o pratinho, a tesoura, a seda e começar o trabalho manual: a única coisa que sabia fazer com alguma qualidade mediana, mas que só lhe servia para destruir a saúde.

Chegado o tempo das juntas reclamarem, se levantou e partiu para a biblioteca. Estava disposto a procurar algum livro para ocupar a mente e passar o tempo, mesmo sabendo que não encontraria nenhum que não tivesse casos de romance, relembrando-o o que lhe foi negado.

Como qualquer idiota, teve a ideia de se levar pelo título, já que dessa vez não tinha nenhum autor em mente que quisesse conhecer. O escolhido foi “Diálogo dos pássaros mortos”. Bastante forte, não? Até deixou passar que era uma mulher quem havia escrito, considerando que nessa categoria de autores nunca se conheceu uma que não se preocupasse com amor, paixão e afins.

O próximo problema seria encontrar um lugar para ler. Sua mente não estava muito preparada nem disposta a dividir a atenção entre a leitura e a ansiedade de estar na presença dos seres superiores.

Ninguém jamais foi retardado o bastante para criar uma sala de leitura individual em um prédio público que de fato seja para um só indivíduo. Mais uma vez era preciso se esconder, mas agora seria mais difícil. Em nenhum lugar altamente isolado, como um corredor que pouca gente anda (o máximo que se consegue em uma biblioteca), seria possível esconder seus sentidos das reações provocadas pela imagem de semelhante nojeira. Mas o sacrifício seria necessário. Faltava muito para o restaurante abrir e ainda não poderia ir trabalhar àquela hora sem despertar muitas perguntas difíceis de responder. Poderia pegar o livro e se esconder no bosque ou algum outro lugar, mas as costas já não aguentavam mais assentos demasiado baixos, as únicas opções a céu aberto para pessoas com seu nível de existência.

Procurou um corredor no segundo andar, onde sabia ser o lugar que menos gente andava na biblioteca. Antigamente, indo até o final, havia uma sala com alguns entulhos, que por algum motivo permanecia aberta. Exceto naquele dia. Sendo assim, se contentou com uma mureta lá no fundo, escondida pelas várias estantes e livros.

Nas primeiras dez páginas, antes dos pombinhos se conhecerem e o cupido assassinar o interesse daquele leitor, ouviram-se passos e vozes.Duas mulheres se aproximavam. Deviam estar perdidas, pois simplesmente passavam por lá, não dando nenhum sinal sonoro de que tinham parado diante de alguma fileira de livros. Ao surgir os sintomas que já conhecia, decidiu tentar ficar calmo e se concentrar na leitura. Durariam alguns segundos apenas.

As vozes estavam altas, elas passavam por ele quando de repente cessaram, deixando somente os passos lentos musicalmente marcarem o tempo e ritmo de um momento que parecia eterno. Não teve coragem de levantar os olhos, mas imaginou que elas o estavam avaliando. Os passos se distanciavam. Enquanto isso ouviu o som de cochichos debochados e mal abafados seguidos de risadinhas.

Os sons foram se fechando mais rápido, não como se estivessem se afastando, mas como se a percepção do que estava em volta se distorcesse. As letras rapidamente se embaralharam pela visão dilatada, enquanto espasmos percorriam os músculos da cabeça. Sabia muito bem o que estava acontecendo e se preparou para a chegada d’Ele, reunindo todas as forças que haviam sobrado das várias horas de assentos impróprios e das poucas horas dormidas.

O toque no ombro, como de um velho amigo, provocou um arrepio. Ele o envolveu, primeiro como um abraço, depois impregnando o corpo, se misturando à pele. O Ódio, com sua voz satânica, sedutora, confortante, dizia calmamente como todos pagariam se tivesse o poder necessário. Disse também, astutamente, fazendo parecer que o pensamento viesse do próprio ser que acabara de possuir, dando-o a ilusão de que algum dia teve as rédeas da situação:

- Tenha calma, eu não posso fazer isso. O Ódio é muito perigoso, é preciso manter o controle.

A isca perfeita. A influência do Ódio crescia a cada instante.O tempo se media por um fator não mais externo, mas algo totalmente indefinido. Não havia percepção alguma do ambiente à volta, não sabia em que posição estava sua carcaça, apenas queria garantir que se manteria parado, encostado na mureta, enquanto mergulhava nas camadas mais profundas e obscuras de uma mente degradada. Tinha a inspiração necessária e deveria ser direcionada para que não causasse dano maior.

Após terminar a pintura já não se sentia mais tão fora da realidade. Guardou-a em um canto inacessível e voltou à reflexão.

Por algum maravilhoso capricho da natureza aquela coisa tinha noção de seu tamanho, inclusive, sentia desprezar-se. Sabia que os outros teriam toda a liberdade do mundo para lhe reprimir, das mais diversas formas possíveis, mas jamais poderia vingar-se. Poderia viver mil vezes e odiá-los um bilhão, mas isso não mudaria o fato de sua inferioridade. Se por alguma infortuna loucura despejasse na sociedade seu bafo de ira seria rapidamente neutralizado, trazendo à situação o pior dos desfechos possíveis, mas que ainda assim se concretizava dia após dia: a humilhação. Restava apenas aceitar a realidade, receber servilmente os açoites odiosos que dali em diante viriam a todos os instantes, partindo de todos os seres cruéis e místicos que habitam aquela mente.

Respirou fundo, retornando à vida. Sentia-se normal. A leitura se tornou impossível sem ter vontade nem mesmo de mexer os olhos. Pelo menos o tempo havia passado. Poderia ir almoçar, mesmo sem ter fome, e depois trabalhar; cumprimentaria os superiores, torcendo para que os segundos passassem logo e, finalmente, poderia se sentar em uma cadeira macia, em uma sala vazia e arejada.

Abaixou e recolheu o livro lentamente, tentando evitar o cansaço que nos últimos dias surgia de graça e subitamente. Caminhou até a saída, pensando como seria rápido passar pelos transeuntes que àquela hora seriam muitos, depois teria a fila. Mas seria rápido, tinha que ser. Quando acabasse, poderia ter paz por algumas horas antes de começar tudo de novo.

Hugo Mascarenhas
Enviado por Hugo Mascarenhas em 26/03/2017
Reeditado em 09/04/2017
Código do texto: T5952773
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