O assassinato da galinha

Eu realmente não sei por qual motivo me pus a escrever este conto. Mas nada, além de um episódio muito curioso ocorrido hoje na rua com minha mãe, me trouxe alguma inspiração. E não, não inspiração de amor ou de belos jardins nas fachadas das casas mal pintadas.

De fato era curioso, não digno de um conto, mas algo dentro de mim insiste em registrar essa parte de meu dia. Não se trata de uma parte qualquer, trata-se de meu eu escritor pronto a relatar a morte de um animal na calçada de uma casa humilde.

Estávamos a caminhar na rua após ir a um mercadinho comprar sabão em pó e pasta de dentes.Minha mãe solicitou que eu a acompanhasse até a mulher que vendia frangos frescos na frente de sua casa.Eu não pude lhe negar uma companhia, mesmo sabendo que não me agradava estar naquele pequeno matadouro. Nada eu tenho contra, apenas uma sensação de repúdio que me assola em ver tal crueldade.

De alguma forma eu estava ali não querendo estar; eu não queria estar ali estando. Criei um conflito dentro de mim e nem eu pude entender o porquê desse confronto. Foi mais que uma simples companhia,minha mãe tinha mais que minha presença, ela tinha minha ousadia, minha fúria de rejeitar aquela visão sanguinária. Meu repúdio se chocou com minha audácia. Eu não era mais um acompanhante, eu já me sentia um algoz.

– Vai demorar? – perguntei.

– Calma! – pediu mamãe.

A primeira galinha já pertencia à mulher que chegara antes de nós.

A moça da venda puxou o animal da caixa e com as mãos ensanguentadas o pôs sobre a balança.

– Três quilos e setecentos... dezenove reais, querida. Vai levar?

A cliente assentiu.

E sobre a balança, a galinha piscava, olhava para o chão sem a menor audácia de levantar o pescoço.Cacarejou desesperada. As pálpebras piscavam aceleradas e a respiração inquieta dava a ela um semblante aterrorizante que era espelhado em mim.

Virei-me para não mais ver. Porém não pude me conter por muito. Tornei a olhar e me deparei com agalinha posta em uma espécie de cone de metal com os pés para cima. Espernegava freneticamente enquanto o sangue escorria de seu pescoço para o tubo de metal mais abaixo.

Quando os pés se aquietaram e o sangue escorreu quase por completo, a vendedora tirou o animal do cone e o deixou imerso em uma panela de água quente. Em seguida, colocou a galinha em uma máquina de depenar até que não lhe sobrasse nem uma pena sequer. Por fim, tirou os órgãos internos para limpá-los e cortou os pés. Assim foi parar dentro de uma sacola e seguiu para as mãos da cliente.

Eu não fiz nada, não pude fazer nada. Assim como aquela galinha morreu sem minha ajuda, eu poderia morrer sem que ela me ajudasse. E as nossas mortes se diferenciavam por tempo, mas que se completavam por terem o mesmo destino inevitável.

Chegou nossa vez. A moça tomou em suas mãos um pouco mais ensanguentadas que antes outro animal.

A galinha foi posta na balança. Olhei novamente, não pude me conter. Não era um déjà-vu. Estava bastante lúcido para delirar e não perceber que aquilo que eu via era a sentença de outro animal. Eu já havia visto aquilo uma vez e me propus a ver de novo, sem a desculpa de que da primeira vez fora um sonho e a segunda, inevitável. Não, muito pelo contrário, a primeira vez fora real e a segunda foi um princípio de maldade que cresceu em mim. Meu espírito me intimou a notar novamente o olhar de um condenado.

Olhou-me. Não foi um olhar avulso ou triste; era intimidador. Piscou sim muitas vezes, mas não tirava os olhos de mim. O que eu tinha a ver com aquilo? Por acaso eu podia mudar alguma coisa? Se minha mãe não estivesse ali, outra pessoa estaria, e sua morte seria inevitável, mesmo que esticasse a sua vida mais uns poucos minutos.

Mas, sim, eu podia fazer alguma coisa, eu podia não me fazer o culpado da morte daquele animal,que por um instante estava a me olhar com a respiração circulando em seus pulmões e em outro estava a agonizar de cabeça para baixo no cone de metal. E foi tarde. Tarde demais para tomar outra decisão.Quando percebi que o preço do animal foi dezoito reais, ele já pagara com a vida. Da balança para o cone se passaram apenas um preço, um assentimento de minha mãe e um súbito corte de uma peixeira.

Fria, ela abriu o pescoço da galinha; frio, eu assistia.

– Vai demorar muito, mãe?

– Depois a gente vem buscar – disse minha mãe à vendedora. Ela assentiu.

Agora sim eu me dei a oportunidade de fugir, de sair dali como uma passagem para a liberdade.

E não era liberdade, era esconderijo. Quis disfarçar minhas vontades, minha culpa, meus desejos. Eu não queria estar ali, mas estava. Não quis matar um animal e matei.

As galinhas que já estavam dentro das sacolas sobre o balcão estavam mortas; estavam mortas para quem passasse por ali, para a própria vendedora e até mesmo para mim. Era só. Mas aquela última, aquela que mais tarde nos serviria de refeição, havia sido assassinada, porque eu a matei, eu estive ali e fui cúmplice de minha mãe. E não foi ela a culpada, fui eu. Aquele animal olhou para mim antes de morrer e eu fui condenado como seu assassino.

Eu fiz mais que quebrar um ovo, eu fiz mais que comer um animal. Porque todas as vezes que eu comia uma galinha, ela já estava morta e preparada. Dessa vez não, eu a vi viva. Fui capaz de vê-la agonizar por quase um minuto sem ao menos poder cacarejar, sem ao menos nada. Morreu com as pernas trêmulas e inquietas viradas para cima. A vendedora? Fazia outra coisa e nem ligava, sua frieza era extrema. Eu? Olhava para a galinha com o pescoço cortado e ligava, minha frieza era pior ainda.

Minha mãe disse que depois buscaríamos o cadáver. Não, não era apenas um animal que serviria de refeição, era sim um cadáver, porque eu e minha mãe, sem estímulo algum de salvação, matamos aquela galinha. Tão cruel quanto a vendedora, tão cruel quanto aquela peixeira, tão cruel como nós mesmos somos capazes de ser.

Sousa Rayan
Enviado por Sousa Rayan em 18/03/2017
Código do texto: T5945069
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