O Flerte

Achava mais feliz a minha vida, quando era fácil alguém comprar as camisas e combiná-las com as calças.

Mas, doze anos de crises de ciúme não valem isso.

Hoje, não me preocupo com horas ou hálitos.

Por outro lado, o que me vem é a obrigação dos supermercados e lojas, tais como essa, onde agora me encontro e onde as camisas tornaram-se difíceis.

Examino uma após outra.

O monte avoluma-se, sem as verdes, das quais não gosto.

A vendedora demonstra impaciência e o meu sorriso é amarelo.

A decisão é uma tarefa árdua para os recém-mal-acostumados.

A moça da loja inicia uma frase que mal alcança meus ouvidos desatentos.

Nesse momento, senti o perfume suave, adequado ao dia, rente à nuca. Buquê de lavanda, de banho recente. Seguiu por trás e para a minha direita.

Somente agora consegui ver, não tudo e nem o que importa, mas apenas os cabelos louros que se derramavam soltos pelos ombros. Embora lisos, terminavam em cachos, como pequenos anzóis prontos a fisgar os desavisados.

A cadência dos passos, não mais do que três ou quatro, remetia às barcarolas.

Era impossível não querer remar naquelas águas.

Então, ela virou-se para mim e o tempo valeu a pena ser contado.

Primeiro o que se vê primeiro.

O nariz era pequeno e proporcional, como se a mãe o tivesse esculpido pacientemente com as próprias mãos, para dar um semblante ainda mais gracioso àquele bebê lindo.

O brilho dos olhos verdes não estava ali para guiar. Antes, se pareciam faróis, eram os faróis do descaminho.

Pensei que seria bem capaz de a boca rósea e os lábios finos, sem se tratar de pedaço de carne vermelha malsã para os assuntos do coração, expressassem um grande sorriso de dentes perfeitos. Não tive que esperar muito.

Muito melhor que estivesse com um vestido que expunha as pernas e os joelhos, mas não as coxas, nem barrigas, umbigos ou piercings. Ela parecia ter o senso de saber até aonde podia chegar. Permanecia alheia, tanto aos excessos vulgares quanto ao recato cafona.

O colo revelava a anatomia feminina delicada. Esse terreno de todos e de ninguém, entre as coisas da virtude e do pecado, unia a perfeição celeste dos traços do rosto com o torneio lânguido do busto. O pequeno decote apenas sugeria essa inquietante possibilidade.

A altura convinha aos meus anseios. Nem alta, nem baixa. Minha boca na direção dos olhos dela.

O porte, embora sensual, não era de se permitir atrevimentos. Cantadas e veleidades estavam fora de cogitação.

Nesse instante, começaram as minhas divagações. Quais outras seriam senão as que a natureza do homem impele frente a tais maravilhas? Planos para ficarmos juntos? Quais escolhas? Uma noite de vontades ou décadas de boa vontade?

Um estado de exaltação tomou-me conta. Esquadrinhei nela cada saliência. Buscava cada recôndito.

Procurei as mãos. Primeiro a direita, bela, dedos proporcionados e unhas bem feitas. Depois a esquerda que saiu lentamente por detrás do quadril para acariciar os cabelos.

E então eu vi.

Ainda hoje sinto a aliança de ouro, com todos os seus quilates, golpeando o meu peito desprotegido.

A vendedora da loja acabara de terminar a frase.

- Ainda não escolhi - respondi-lhe atordoado.

E prontamente retornei às camisas difíceis.

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Juiz Holden
Enviado por Juiz Holden em 19/02/2017
Código do texto: T5917381
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