Meia Vida

O suor escorria em seu rosto enquanto a arma era carregada. Apesar de ser inverno, os resquícios de verão ainda emprestavam o ambiente. Seu semblante demonstrava um desespero sublime; impossível de ser lido pelo mais tenaz dos bruxos.

Todo esse processo lhe embrulhava o estômago e criava uma reação em cadeia. Do cheiro da pólvora às travas enferrujadas, tudo aquilo suscitava as mais improváveis lembranças, coisas que esmigalhavam em seu cérebro e se perdiam à luz da ansiedade conforme as horas corriam. Um pensamento fugaz enveredou em seu inconsciente. Uma súbita manobra de sua mente para ludibriar o medo.

Era como estar em outro lugar, outro corpo. Executar condenados era, dali em diante, seu ofício, a arte que o distinguira dos outros tantos. Lembrou assim de tempos não muito distantes, de quando o medo era maior que seus sonhos e ambições; de quando ele se fazia presente, mas não sem sua permissão. Refletiu como a vida fluíra, como se alterava e voltava ao mesmo ponto. Todo o devaneio se dissipou quando o suboficial entrou na sala. "Coronel, está na hora."

Percebeu de dissipou que apesar de ser um lugar novo, o quartel tornava-se como sua infância. Lembranças assentadas no fundo de sua alma eram de algum modo, familiares. Foi ai que percebeu a verossimilhança entre o gosto amargo daquele dia e da terna idade. Um gosto parecido com o que experimentaria no dia de sua morte.

Pôs-se de pé com dificuldade, toda sua carne relutava à prosseguir. Seu corpo digladiava contra sua vontade, uma luta em vão. O caminho até a linha de tiro tornou-se tortuoso.

O quartel onde ocorreu execução foi construído nos mais simples moldes. Posto na entrada da cidade, segundo o prefeito e fundador "era pra conferir a cidade ares de fortaleza e amedrontar inimigos". Resistiu a 13 ataques e um incêndio criminoso. O cheiro acre da madeira podre, ainda encrustado, misturava-se com a bílis que relutava em se fazer presente aquela hora.

Voltou a emergir novamente naquele sentimento imperativo conforme andava de encontro à luz do pátio. Tinha uma noção abstrata do que era poder; acompanhava a ascensão e queda de grandes homens e impérios, mas jamais provara dessa sensação.

A baioneta empenhada com destreza e o uniforme alinhado conferia-lhe um ar de soberba, deixava seus passos mais firmes. Artifícios que mascaravam seu medo.

Sabia que uma mentira contada a esmo equivalia a uma verdade

O encontro com o condenado era agora iminente. O suor saltava de sua testa ao passo que sua mão direita atrofiava de medo. Tinha em si o poder de Deus. Dedilhava o gatilho tentando encontrar alguma conexão, algo que pudesse justificar seus atos. A ordem foi expedida, o rifle já estava em punho

Quando se é jovem, a alma de uma pessoa com medo é frágil. Perceptível ao mais sensível toque. Seu corpo torna-se latão; velho, travado e quebradiço. Mas apesar das tempestuosidades da alma, o espírito se mantém, a todo momento, fortalecido, numa forma desesperada de se manter firme e vivo. Apenas com a corrupção do tempo e as vicissitudes da vida é que opomos os lados da balança. Os motivos são inumeráveis.

Foi assim que se sentiu o Coronel no momento em que apertou o gatilho. O jeito de pólvora ficaria eternamente gravado em sua memória como um sinal que precede a morte.

Conseguiu olhar pela rota do cano o olhar vazio e taciturno do condenado. Viu a sua alma rígida e seu espírito desgastado. Só então se deu conta do cansaço de uma vida, de um alguém fatigado

pelos arrependimentos do tempo.Pôs o rifle em descanso, aliviado e curioso. Não sabia como a vida responderia no dia seguinte.

Dom Olegário
Enviado por Dom Olegário em 15/01/2017
Reeditado em 15/01/2017
Código do texto: T5882705
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