ÚLTIMO DIA

O menino já estava olhando há cinco horas pela janela. Aguarda a chegada do carro da prefeitura que o levará para o abrigo onde mora. E quando isso acontecer a Unidade de Internação de Crianças e Adolescentes do Hospital Psiquiátrico Sigmund Freud vai dar alta a seu último paciente. Fiquei observando-o por um tempo, pensando em ficar um pouco com ele, distrai-lo de alguma forma. Mas desisti. O coitado quando chegou era hiperativo e agressivo. Só dele conseguir ficar parado já é um avanço enorme. Saio e fico passeando pelo prédio, perdido nos meus pensamentos.

Meu Deus, como eu relutei em aceitar este emprego. Cheio de teorias da faculdade, achava a internação de menores um absurdo. No primeiro dia, quando vi isto aqui com 30 meninos e 12 meninas, a vontade era sair correndo. Isso há 16 anos atrás. Lógico que a grande maioria não precisava ter vindo mesmo para cá. Mas ao mesmo tempo foram tantos milagres. Tantos casos que realmente precisavam deste lugar, do nosso serviço.. Minha mente vai contra a minha vontade para os internos da Fundação Casa que antes eram encaminhados para cá. Dois em casa três só estavam tentando "sair da tranca". Mas quantos e quantos não possuiam problemas sérios que precisavam de tratamento. O Juarez, por exemplo, que metia medo até nos monitores que precisavam acompanha-lo. Duas mortes no costado e igual ao Mike Tyson. O moleque não tinha nem pescoço! Todo mundo desconfiava que a Fundação tinha colocado ele aqui para não morrer ou não matar ninguém lá. Até o dia que eu vi os ohos dele vidrarem e ele avançar que nem um touro para cima de mim. Graças a Deus fiz judô na juventude e consegui derruba-lo e imobiliza-lo. Mas a partir daí se conseguiu fazer alguma coisa. Aquele olhar me fez desconfiar de epilepsia e convenci o médico a investigar. O "cabra" sofria uma forma rara da doença, além de outros distúrbios. A partir do diagnóstico e de muita conversa e terapia o menino saiu para uma vida mehor. Mas deu trabalho. Rio sozinho lembrando do dia que entrei na clínica e ele estava matando outro paciente enforcado. O pivete de negro já estava azul!

-Puta que pariu, o que você está fazendo?

Ele largou o menino, que caiu desfalecido no chão, e me olhou perplexo.

-Tio! Você falou um palavrão.

Eu tinha que acudir o outro e me manter sério, mas que vontade de cair na risada. E não foi só ele. Quantos realmente precisavam de ajuda e quantos farsantes ajudei conversando? E os autistas, as borderline, os esquizofrênicos juvenis e tantos outros. Casos complicadissímos, que ficariam indo e voltando de serviços de saúde, sem solução. Quantas e quantas vezes lutei e me coloquei em problemas por conta de pacientes. Minha dedicação custou até meu casamento.

A ambulância chega e uma das funcionárias vem me avisar. Me pergunta se quero acompanhar a alta. Peço para que ela faça isso por mim. Entendo o preconceito contra os hospitais psiquiátricos, mas será que acabar com todos é realmente parte da solução? Me debruço sobre a janela e vejo o menino indo embora. Uma antiga canção me vem a mente e começo a canta-la. Lágrimas saem dos meus olhos:

"Só louco amou como eu amei

Só louco quis o bem que eu quis

Ó insensato coração, como me fizeste sofrer

Porque de amor para entender, é preciso amar

Porque...

Só louco, só louco."

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 14/01/2017
Reeditado em 23/01/2017
Código do texto: T5881973
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