A vida de Anita.

Era o ano de 1993, ano no qual o mestre Austregésilo de Athayde e suas Histórias Amargas sumiram desse mundo, o pequeno Grande Othelo foi fazer graça para Deus e Jessé finalmente se tornou aquela nuvem que passa lá em cima, no mesmo ano, todos se encontraram com ele, ou seria ela?

Anita tinha 21 anos, uma vida inteira pela frente, planos, sonhos, estava apaixonada e como toda mulher apaixonada, entregou-se ao noivo. Naquele tempo, sexo era tabu ainda, não era tratado e retratado tão abertamente quanto nos dias atuais. As meninas começavam sua vida sexual mais tarde, eram mais seletivas, eu diria. Sexo e amor andavam muito juntos, as mulheres se entregavam a quem de fato amavam; assim como Anita.

Em 1993 não se ouviam falas acerca de direitos femininos, movimentos feministas, não existia delegacia especializada nem Lei Maria da Penha. Sim, era o século passado, literalmente. Na década de 1990, tudo era muito diferente. Não existia a Internet, pasmem! Informação? Apenas por rádio, TV, jornais e revistas.

Anita sempre foi muito inteligente, era esperta, não bobeava com o namorado não, além disso, tinha uma tia, muito querida em quem confiava muito e que a ajudou no momento que, talvez, tenha sido o mais difícil de sua vida.

Anita já tinha 22, e sua menstruação atrasou. Ela, então, recorreu à tia, que a acompanhou ao médico. Bomba! Confirmou-se a gravidez. Pelas contas do médico, baseadas em suas informações, a gestação tinha de 5 a 7 semanas, pouco mais de um mês. Ela se desesperou? Enlouqueceu como a Ismália? Não! Com o apoio da tia, do noivo, da irmã e de um amigo, Anita se decidiu por interromper a gravidez.

Conseguiram um medicamento abortivo chamado citotec ilicitamente, uma vez que não se tratava de um analgésico e, se agora é difícil comprar, imaginem no século passado.

Pois bem; instruída, maior de idade, noiva e com o apoio da família, o que levou Anita a se decidir pelo aborto? O único critério que deveria ser levado em consideração num julgamento desses: Ela não queria ser mãe. Não naquele momento de sua vida.

Haverá quem leia a história e diga: “ se prevenisse”, “ pensasse antes”, “ fazer foi bom”, e todos esses argumentos fracos que quem não passa pela mesma situação ou não tem empatia possa vir a falar sem conhecimento de causa.

Anita tomou o medicamento durante o dia e a noitinha, sentiu fortes dores, foi ao banheiro e ouviu quando algo caiu no vaso sanitário. Olhou aquela bolinha ensanguentada, apertou a descarga, foi para o seu quarto e chorou copiosamente durante toda a noite.

Com as lágimas, deixou que saísse de dentro dela todo e qualquer sentimento de culpa, toda a mágoa, todo o ressentimento, ou qualquer tipo de sentimento que a fizesse se arrepender do que havia acabado de fazer. Tratou de apagar tudo aquilo de sua memória e prosseguiu com sua vida.

Continuou com seu noivo por mais algum tempo, mas conheceu outro homem, dezesseis anos mais velho, com quem teve um caso. Com o sentimento de culpa pela traição ela não conseguiu conviver e acabou por terminar um noivado longo.

Anita casou-se com o homem com quem havia traído seu noivo, que morreu de forma trágica, alguns anos mais tarde, assassinado.

Já casada e grávida novamente, Anita voltou a estudar, queria expandir seus horizontes, sentia-se presa num mundo sem janelas, tinha alma de poeta. Apesar de ter uma vida razoavelmente boa, resolveu trabalhar, conhecer pessoas novas e mesmo insegura tomou outra decisão que mudaria sua vida. Aos 33, Anita separou-se do marido, encarou a vida de peito aberto e queixo erguido, criou e educou sua filha sozinha e sente-se realizada.

Hoje, Anita ressuscitou as lembranças que matou naquele banheiro, não foi nada fácil recordar, mas precisava contar ao mundo como se sente. Não consegue imaginar como teria sido sua vida se não tivesse optado por interromper a gestação, ainda que tenha passado 23 anos de sua vida oscilando entre opiniões positivas e negativas sobre seu ato. Ela não se arrepende de ter colocado um ponto final na gravidez porque, às vezes, as vírgulas são mais conclusivas do que o próprio ponto final, mudam totalmente um contexto todo.

Com relação à opção do aborto, só o que lhe causa tristeza é o julgamento de pessoas, que nem sequer imaginam o que a levaram a praticá-lo; julgamento esse cruel e descabido, pois, a vida dos que a julgam não é a sua e vice-versa.

Isabel Cristina Oller
Enviado por Isabel Cristina Oller em 02/12/2016
Código do texto: T5841112
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