Impressões sobre manchas

Acordei como todos os dias, cambaleante, mas ao entrar na cozinha fui subitamente renovado pela atrevida luz do sol me alertando que era sábado.

Sim. Logo me refiz com o bule num fogo baixo que desde o ano passado prometi arrumar.

Enquanto borbulhava a água reparei no escorredor da pia, uma frigideira que lavara na noite anterior. Nova. De aço inox. Brilhando.... Com uma mancha!!

Assustei-me com a descoberta. Inclinei na luz... Passei levemente o dedo. Ela estava lá. Desde ontem!? Como deixei passar?...logo eu que lavo aqui...esfrego ali...refaço o enxágue...

-Não... você não vai ficar aí, pensei.

Indeciso sobre se passo o café ou se pego a bucha..., peguei a bucha. Corri nela com o detergente. Forcei a mão mas, não adiantou... procurei um saponáceo e nada.

Vasculhei embaixo pia... desliguei o fogo. Achei uma palha de aço carcomida. Rezei sobre ela encharcando-a de sabão. Ataquei a mancha diretamente sem avisar mas, na ansiedade torci a mão. Droga!...

-Me arrependi de ter desligado o fogo: poderia ter feito o café!!

Mãos à obra: a missão é tirar a mancha. Porque que deixar a mancha!?... ser vencido por uma pequena mancha!! Uma mancha... -Não... Não e não!!!! Aquela mancha já estava ali...só não reparei antes.

-Havia feito um delicioso pão na chapa ontem... com a mancha!

Invadiu-me uma coisa!

Uma mancha e eu que não tolerava manchas. Pão na chapa com manchas...

É como se a mancha estivesse impregnada em mim. Uma mancha de nada. Como uma venda. Que me impedia de ver outras manchas.

Liguei o fogo e coloquei lá a frigideira. Hei de aquecer aquela mancha. -Quente ela sairá!, resmunguei. Parodiando recente redundância, "não ficará mancha sobre mancha".

Aproveitei o bule no outro fogo e fiz o café. O molhado da frigideira zuniu e se foi mas, a mancha ficou lá!

Achei por bem colocar uma manteiga, talvez ajude. Subiu uma fumaça e um cheiro bom invadiu a cozinha. Não me contive e coloquei o pão. Aquele cheiro de torrada arrefeceu o amargo em mim. Por uns instantes esqueci a mancha: peguei a banda de pão ainda quente, adocei um pouco de café e com um só gole resolvi engolir a mancha e meu orgulho!

(21 de novembro de 2014)