A FAMÍLIA DO ZÉ DA QUENGA

Bidinho era mais um “flanelinha” perdido nesse mundão de asfalto que é Brasília. Cansado de tanto ser baculejado, resolveu dar um jeito na vida. Saiu da periferia, jurando pra todo mundo que ia arrumar uma viração.

Rita, a namorada, havia juntado os trapos com Bidinho, há cerca de uns nove ou dez meses. Nascera de família pobre, lá na Paraíba, e veio, com os pais, morar em Brasília. Arrumaram um barraco numa invasão da Estrutural e se ajeitaram como puderam no “aperto” de madeirite e zinco, com um tanque de cimento e uma bica d'água.

Os trastes eram poucos e tudo cabia em cômodo único resultando um permanente cheiro de óleo de soja, que impregnava roupas, paredes, sapatos e as narinas.

Moravam, amontoados no barraco, o pai, a mãe, ela e Bidinho.

O pai, Zé da Quenga, um cachaceiro curtido, vivia reclamando de dores no “figo”, resultado da ingestão cavalar e diária da água que passarinho não bebe. Nascera em uma cidadezinha nos cafundós da Paraíba e, antes de se ajeitar com Dinalva, vivia de uns bicos que ganhava no “Beco das Muié-Dama” fazendo pequenos serviços para as mulheres que ganhavam a vida por ali.

Nos intervalos entre o fazer nada e o fazer quase nada, Zé da Quenga se divertia tomando cachaça curtida com pedaços de caju. O apelido veio por conta de uma surra que levara de uma tal de “Maria Quenga”, de quem andara roubando umas galinhas enquanto a mulher divertia um ou outro cliente...

Maria Quenga bem que desconfiava que seu plantel de penosas andava diminuindo mas, não sabia a que atribuir o fato e pensava que as aves descobriram algum meio de fuga e foram cacarejar em outros terreiros.

Um dia, um moleque que curtia uma desavença com Zé resolveu que iria tirar a diferença e foi contar para Maria Quenga que era o Zé quem andava dando sumiço nas suas galinhas.

Maria Quenga, uma negona de bom tamanho, era conhecida em toda a área por ser proprietária de um murro capaz de derrubar o Maguila, por nocaute.

Não deu outra! Quando Zé foi se achegando para perguntar se a mulher tinha algum “mandado” para ele despachar, em vez da resposta que esperava, quase morreu de susto quando a iracunda caiu em cima dele com murros desfechados com as duas manoplas.

O conflito só acalmou quando uns três “homoafetivos” que vendiam sanduíches e pastéis correram em socorro do avexado e conseguiram, a muito custo, livrá-lo das garras de Maria Quenga.

Com os olhos inchados e roxos de tanto apanhar, Zé foi levado pelos dois para uma farmácia perto dali e devidamente tratado pelo dono da botica. Daí em diante, passou a ser chamado pelo populacho debochado, de “Zé da Quenga”.

Dinalva, a mãe, mulher nova, mas envelhecida pela vida árida em sua terra, e pelas grossas varizes que lhe esculpiam as pernas, sofria para andar um bom pedaço entre o barraco e as residências de grã-finos em que fazia faxina, lavava e passava roupas.

Na favela, o esforço que fazia para carregar, na cabeça, as pesadas latas de água foram a conta para estufar-lhe as veias e, ainda de sobra, provocar uns problemas complicados, com um períneo descuidado...

Um ano e meio depois da mudança para Brasília, alguém, esbaforido e assustado, bateu no barraco onde o manguaceiro Zé da Quenga jazia, babando, estirado no catre.

-- Seu Zé! Seu Zé! Ô! Seu Zéeeeeeeee! Abre a porta, Seu Zéeeee!

Cambaleante e enxugando a baba no antebraço peludo, “Seu Zé” abriu a porta, resmungando?

-- Que porra é essa? Isso é hora de encher o saco da gente? Não vê que estou ocupado! Pô! Vociferou gesticulando.

-- Seu Zé! É que mandaram eu chamar o senhor!

-- Quem mandou o quê? Pra quê? Porra!

-- Mandaram chamar o senhor! É um pessoal dos bombeiros que está lá na Estrutural cuidando de um acidente! Parece que atropelaram Dona Dinalva!

-- Puta que o pariu! A Dinalva? Logo agora? Avisa lá que já estou indo! Que rolo? Puta que o pariu!!!

-- Tá bão! Então tchau!

Zé da Quenga passou um pouco de água no rosto barbudo e foi, reclamando com os seus botões, ver o que tinha acontecido com a Dinalva, lá na Estrutural.

De longe podia avistar o ajuntamento de curiosos. A maioria, gente da sua favela, agora “comunidade”, um punhado de carros querendo arranjar uma brecha para sair dali e uma viatura da polícia, com a sirene a pleno, para completar o cenário.

Foi se achegando, com muito custo, arranjando um jeito de furar aquele ajuntamento, chegar perto dos socorristas e do corpo ensanguentado. Aproximou-se e, lá estava Dinalva, estatelada no chão, com os olhos esbugalhados.

A mulher não tivera, sequer, chance para entender que estava sendo atropelada. Tudo foi tão rápido que o nem teve tempo de perceber a chegada da morte.

A trouxa de roupa que conduzia sobre a cabeça, fora atirada a uns dez metros e a roupa suja do Dr. Calixto, se havia espalhado pelo meio da rua. Carros e transeuntes se encarregavam de pisotear as peças sob a responsabilidade de Dinalva.

Os paramédicos estavam fazendo das tripas coração para ressuscitar a defunta. Dinalva já havia se livrado desse mundo padrasto e fora procurar os anjos de que tanto falavam os padres da igrejinha e as velhas beatas. Vestidas de preto, véu e terço na mão eram especialistas na puxação do saco sacerdotal.

Zé da Quenga, com os olhos ainda meio embotados pela carraspana, foi se achegando e perguntando:

-- O que foi que aconteceu com ela? Ela é minha mulher! Pra que hospital vocês vão, com ela?

-- Meu senhor! Lamento lhe dizer, mas o acidente foi grave e, apesar das tentativas, já não temos possibilidade de fazer mais nada! Infelizmente, a vítima entrou em óbito! Disse um bombeiro do Resgate.

-- Quem foi que matou ela? Já prenderam o cara? Cadê o carro?

Um motoboy magrelo, que estava ali por perto, foi logo se apresentando para dar o seu pitaco:

-- Olha, moço! Eu não vi nada, mas ouvi dizer que foi um carro preto, com chapa branca! Era um caro oficial! Tinha só o motorista e um homem gordo sentado no banco de trás! Deve ser algum figurão aí do governo! Se eu fosse o senhor, não ia deixar por menos!

Um policial que fazia umas anotações num impresso próprio para essas situações concluía seu diálogo, pelo rádio, com o quartel:

-- Alô Central! Unidade 31! Atropelamento, com vítima em óbito! Copiado? Câmbio!

-- Unidade 31, Central! QSL! CHARLIE-BRAVO JONAS! Copiado! Prossiga!

-- Central, Unidade 31! QSL! Solicito transporte para ÍNDIA MIKE LIMA, QSL?

-- Unidade 31, Central! QRX-Mantenha QAP e logo que TRNP chegar, entre em QSO com a Central! QSL?

- QSL! ROGER-ROGER!

- QSL! ROGER-ROGER!

Concluído o tráfego de mensagens via rádio, o policial militar foi logo se adiantando e, desembuchou:

-- Senhor! Estou concluindo o preenchimento da “Ocorrência” e vai ser necessária a sua ida à Delegacia Policial para a lavratura do B.O.. O senhor precisa prestar informações sobre a falecida, para atendimento às formalidades e abertura do inquérito!

Depois, o senhor vai receber uma papeleta para apresentar lá no Instituto! O corpo da acidentada será removido para o Instituto Médico Legal, onde será feita a autópsia para a liberação posterior! O senhor, depois de atender à Delegacia, poderá ir ao IML para as providências necessárias ao sepultamento.

-- Mal o guarda terminou as suas orientações, o clima foi cortado por um berreiro que saía de dentro de um micro ônibus pirata. Um trocador magrelo e com os olhos avermelhados de maconha berrava no meio daquele calorão medonho: “Olha aí, pessoal! Rodoviária! Rodoviária! É “dois real”! “Dois real”!

Veículos, na lentidão do trânsito congestionado, faziam uso anormal das buzinas avisando que seus motoristas tinham pressa de chegar aos destinos, nas imediações da Esplanada dos Ministérios...

No meio da confusão, uma voz autoritária se fez ouvir: Dá licença! Dá licença! Abram caminho! Abram caminho! Era um homem, de terno preto e gravata que, num gesto de caridade, vinha colocar nos quatro pontos cardeais que rodeavam o cadáver de Dinalva, quatro velas; uma ao Norte, outra, ao Sul, outra a Leste e, mais outra a Oeste.

O vento que vinha lá da direção do Setor de Abastecimento parecia querer sacanear o homem, que precisou gastar quase toda a sua caixa de fósforos para conseguir acender as quatro velas.

Compenetrado e cioso do seu gênio caritativo retirou do bolso do paletó um livrinho, com capa de couro preto, e iniciou a proferir um formulário especial para encomendar defuntos. Era um diácono.

Na reza, convocava anjos e santos especialistas em conduzir almas de acidentados e, ao final, convocou os circunstantes para rezar uns Padre-Nossos e outras tantas Aves-Maria...

Zé da Quenga estava louco para se mandar dali. Não sabia rezar, não gostava de padres e tinha uma quedinha por uma denominação pentecostal cuja pregação na TV era intensa e estava completamente atordoado com aquela enxurrada de códigos que faziam parte do palavrório “policialês”, completamente desconhecido para ele.

Com o turbilhão de informações que enfiaram em sua cabeça parecia apatetado, não sabendo por onde começar o calvário que teria pela frente.

Delegacia? IML? Onde ficava essa porra de IML? Aqui em Brasília, tudo é longe pra cacete e como é que vou pegar condução pra tudo isso? Onde vou arranjar dinheiro? Quanto vou ter que pagar de taxas e coisas assim? Ocorrência, delegado, escrivão, ficha, inquérito! Tudo isso pra que? Tô fora!

O pensamento do pobre Zé estava a mil e ele não se conformava com o acidente ter ocorrido, exatamente, naquele lugar afastado de tudo, bem ali na Estrutural. Para ele, bem que Dinalva poderia ter morrido entalada com espinha de peixe, engasgada com um caroço de feijão ou, ainda, com um choque elétrico do ferro de passar roupa.

Tudo isso bem que poderia ter acontecido lá dentro da casa do Dr. Calixto. Quem sabe se não cuidariam das despesas com o enterro. Afinal, bem que podia ser “acidente de trabalho”! O homem é procurador e poderia resolver toda essa papelada facinho, facinho!

Enquanto a polícia rodoviária se desdobrava para organizar o trânsito, em hora de rush, Zé da Quenga procurava organizar os seus pensamentos. Precisava resolver o que fazer e, rapidamente. Na situação em que se encontrava, as coisas só iriam de mal a pior.

Os últimos trocados que tilintaram nos seus bolsos ficaram acomodados na gaveta do birosqueiro da favela (agora comunidade), em troco de umas doses de cachaça...

Terminadas as anotações, o policial entregou-lhe uma cópia da ficha orientando mais uma vez sobre a ida à delegacia da área. Em seguida, liberou o corpo a fim de que o pessoal do rabecão desse por concluída a sua parte no trágico acontecimento.

Zé da Quenga fez que sim. Enfiou o papel no bolso da calça, deu meia volta e partiu para o seu barraco de madeirite e zinco. Enquanto atravessava a estrada, driblando os carros, podia ouvir a sirene do rabecão que diminuía o volume à medida que o veículo avançava em direção ao Plano Piloto. Não verteu nenhuma lágrima...

Na porta do barraco, uma pequena multidão! A notícia já se havia espalhado com a velocidade do raio... Todos queriam falar, ao mesmo tempo. Uns para dar os pêsames, outros para tecer comentários elogiosos à falecida vizinha, outros para falar da saudade que sentiriam e, outros ainda, para consolar o pobre do Zé da Quenga.

A situação estava nesse pé, quando Rita dobrou a esquina e viu toda aquela gente parada diante do barraco em que vivia com os pais. Sem saber direito o que estava ocorrendo apertou o passo tratou de ir ver o que se tratava.

Com certa dificuldade conseguiu romper por dentre os curiosos e, ao entrar em casa, sentado ao lado do fogão, Zé da Quenga conversava com vizinhos mais íntimos tendo, na mão um copo, pela metade, de cachaça. Já havia ingerido uns dois daqueles e já tinha mandado uma garota conhecida buscar uma outra garrafa, fiado, lá na birosca do Damião.

A pobre da Rita, pega de supetão, ao saber do acontecido, desabou numa choradeira sentida, querendo ver a mãe pela última vez, perguntando a todo mundo onde é que ela estava sendo velada?

O pai, já pra lá de Marrakesh, explicou que não haveria velório nenhum pois Dinalva estava num tal de IML que ele nem sabia em que lugar ficava. Também não podia trazê-la para o barraco porque ali não cabiam nem dez pessoas, quanto mais com caixão, velas e tudo o que se coloca no lugar, em uma dessas ocasiões.

Ainda, acrescentou Zé da Quenga, de onde sairia o dinheiro para comprar caixão, preparar o corpo, transportar Dinalva para a favela e, ainda por cima, ter que levá-la, mais tarde, para o cemitério? Quem iria bancar as despesas com o aluguel de sepultura, enterro e essas coisas todas?

Pelo menos, lá no IML é que ela não iria ficar muito tempo. Logo, logo, iriam precisar do lugar que ela ocupava, na geladeira, e tratariam de dar um destino adequado ao corpo...

Rita, percebendo as intenções do pai, ao mesmo tempo em que entendia seu raciocínio, como filha, sentia a perda da mãe e achava que deviam dar-lhe um enterro decente com “câmara ardente”, velas acesas, gente velando e, principalmente, um padre para encomendar a alma da falecida.

Precisava falar com o marido mas, infelizmente, não tinha telefone celular e, mesmo se tivesse, como iria falar com Bidinho se ele também não tinha esse recurso e estava tomando conta de carros em um estacionamento lá na W3 Sul?

Bidinho se virava como podia no estacionamento. Passava o dia olhando os carros que procuravam vagas e indicava as que ficavam na sua área, numa das áleas da W3 Sul, nas proximidades da Biblioteca Demonstrativa.

Ali, sempre conseguia alguns trocados. Principalmente aos sábados porque sempre tinha algum tipo de show ou de apresentação musical e os artistas e frequentadores que estacionavam por ali, nunca deixavam de dar-lhe alguns trocados pelo serviço prestado.

De tanto cuidar de carros de artistas, acabou por conhecer vários dos que atuavam no Clube da Bossa Nova, dos quais alguns lhe davam um pouco mais de atenção.Com eles, caprichava na flanelada, trocava idéias sobre a vida artística e como era bom o sucesso nos clubes, palcos e platéias. Ficava feliz da vida mesmo quando, ao longe, podia ver a chegada ou a saída de duas artistas muito queridas pelos frequentadores. Era maluco por sarapatel e tinha uma artista, a Célia Rabelo, que cantava uma música falando do sabor das comidas brasileiras e o sarapatel estava lá... Jurava por todos os santos que ainda iria ver a moça, carinhosamente chamada de "menina sapeca". A outra, a Sandra Duailibe, derretia a platéia com seu canto de falada refinação. Um dia ainda iria ver as duas, na Livraria da W3 ou, até mesmo, no palco do Clube da Bossa...

Bidinho ficava maravilhado com isso e fantasiava um dia largar aquela porcaria de serviço e se dedicar a à cantoria. Lá na Paraíba gostava de cantar e era conhecido dos boêmios do lugar pela sua capacidade de fazer rimas. Era um bom repentista. Só precisava de um violeiro e pronto! O resto era no gogó! Ali, no Clube da Bossa, tinha tudo o que precisava: bateria, contrabaixo, piano, guitarra e, principalmente, platéia!

Quem sabe se um dia, um desses artistas daqui resolve fazer um convite? Esse era o pensamento de Bidinho que já estava quase a ponto de arriscar.

O Clube era um lugar muito falado e todos os sábados, gente amante da música ia para lá cantar, tocar ou assistir as apresentações. Tinha até um samba que falava de tudo o que acontecia lá dentro, com as pessoas e com as relações delas com a música. Um barato aquilo lá! Era uma homenagem ao Clube empenhado em preservar e difundir a bossa nova.

Assim pensando, Bidinho já estava armando um esquema para falar com um cantor querido na cidade que tinha alguma influência lá no tal Clube da Bossa e na Biblioteca. Era o Goela de Ouro! Um cara pra lá de legal, dono de um vozeirão sem tamanho, queridíssimo da mulherada e da marmanjada também. Tinha, também, um outro, o Bivar, um amazonense prá lá de carioca que bombava com uma senhora ginga na bossa. O "Querem-Quem-Quem" tinha uma batida muito legal e era aplaudido pela platéia entusiasmada...

Bidinho, entre uma e outra lavação de carros, ficava dando tratos bola: Quem sabe se um dia vou lá fazer meus repentes? Ah! Se eu pudesse ser assim, tão querido como ele, largaria esse negócio de estacionamento e iria viver só dos meus repentes. Versos eu sei fazer e muito bem! Um dia ainda vou ser tão famoso quanto o Goela! Juro!

Um vento frio varou pela camiseta adentro e Bidinho, tirado de seu devaneio, acabou de amontoar as latas de água utilizadas para a lavagem de um ou outro carro e tratou de se mandar para o barraco, lá para as bandas da Estrutural.

Ao divisar o amontoado de gente que ainda se mantinha nas imediações da moradia, desconfiou de que alguma coisa errada havia acontecido. Felizmente, o barraco não havia sido queimado por algum incêndio. Será que alguém se machucou? Perguntou a si mesmo.

Ao passar pelo meio do bolo, levou mais de trinta palmadinhas de condolência, nos ombros, e algumas palavras de consolo proferidas por alguns dos mais afoitos, naquele ajuntamento.

De repente, sentiu um puxão no braço esquerdo. Era o Tocaia, um sujeito conhecido na favela (agora “comunidade”) por ter um defeito grave, congênito, que lhe deixava o corpanzil entortado para o lado direito e um pouco para baixo.

Tocaia era o apelido do coitado. Filho de pais religiosos recebera o nome de personagem bíblica, numa espécie de apelo desesperado. Sendo aleijado, de nascença, nada melhor do que deixá-lo, desde logo, nas mãos de Deus. Assim foi feito. Recebeu o nome de Sofonias da Silva.

A patologia complicada resultava em uma escoliose grave, com deslocamento da omoplata direita. Em consequência, o eixo de gravidade do corpo descia da cabeça, passava pelo lado direito do quadril e desaguava no pé direito.

Assim, o peso do corpo, se apoiava quase todo na perna direita. A esquerda, mais atrapalhava do que ajudava. Tocaia tinha que andar apoiado em um pau feito bengala dando pequenos pulos com a perna direita e arrastando a esquerda.

O apelido, pura maldade, lhe foi dado por um sujeito metido a gozador que cismou de dizer que aquilo fora um castigo de Deus. Cuidou de espalhar pelo bairro que Sofonias ficou daquele jeito em razão de um castigo divino, num dia em que jurou aprontar uma “tocaia” para tirar uma diferença com um desafeto.

Segundo o falastrão, Sofonias sabendo que o tal desafeto havia ido buscar pão numa birosca, tratou de ficar escondido atrás de uma touceira de mato alto, com um porrete na mão, esperando o retorno do outro, pelo lado direito da estrada.

Assim, Sofonias se ajeitou, escondido atrás da moita, apoiado na arma, encurvado, com o corpo escondido e com a cabeça em posição de avistar quem vinha lá das bandas do miolo da favela.

Foi nessa hora que Deus deu “um vento” nele e aconteceu o aleijão. Nesse momento, morria o Sofonias e nascia o Tocaia.

Pendurado no braço de Bidinho, Tocaia foi logo dando o serviço notificando-o do ocorrido com Dinalva. Bidinho, desvencilhou-se com um safanão e tratou de entrar no barraco para ver direito o que estava acontecendo.

Lá dentro estava Rita, com os olhos vermelhos, se debulhando em lágrimas. Correu para junto do marido abraçando-o e enfiando o rosto no seu peito, soluçava o próprio desespero. Vislumbrava o desamparo futuro, com a definitiva ausência da mãe.

Zé da Quenga jazia sentado sobre um caixote, no canto, próximo ao fogão, resmungando, incomodado com aquele ajuntamento na porta do seu barraco, tirando-lhe o sossego, num momento complicado como aquele. Tinha vontade de botar todo mundo para correr e, ao mesmo tempo, imaginava que alguém, condoído, lhe trouxesse uma ou duas garrafas de cachaça para acalmar aquela aflição.

Enrolando a língua e gesticulando descoordenadamente, conseguiu avisar que não iria fazer nada de enterro e que o corpo de Dinalva iria ficar lá no tal de IML. Eles que fizessem o enterro por conta do governo mesmo. Afinal, para que serve essa porra de governo? Pensava...

Dinalva acabara ali, no asfalto quente da Estrutural, e não iria mover nem uma palha para ajeitar o cadáver. Já morreu mesmo! De que adianta ficar com lero-lero?

Mal acabou de por um ponto final na situação, olhou para o lado em que se encontrava Tocaia, esticou o braço com o indicador apontado para ele. Quanto se preparava para balbuciar alguma coisa, expeliu um fio de baba e, desabou no chão com uma crise de “delirium tremens”. Os calcanhares grossos e cheios de fendas prenunciavam que lá pelas bandas do fígado as coisas iam de mal a pior.

Três dias após, Zé da Quenga fazia companhia à Dinalva num gavetão frio do IML. Havia morrido de cirrose hepática embaixo da Ponte do Braghetto quando tentava pescar algum lambari destrambelhado, no braço de lama apodrecida e fétida do Lago Paranoá.

Bidinho e Rita, alguns dias depois, foram surpreendidos por três homens armados de metralhadora que invadiram o barraco para se ocultar da polícia. Eram traficantes de uma quadrilha que atormentava a Estrutural.

Encurralados, um em cada ponto cardeal, no barraco, abriram fogo contra a patrulha que se espalhava pelo lado de fora. O tiroteio comeu solto e, após silenciadas as metralhadoras do barraco, todos estavam mortos, crivados de bala. Os quatro meliantes, Bidinho e Rita. Foram todos se juntar a Dinalva e Zé da Quenga, nas gavetas congeladas do IML. Os vizinhos disseram que os traficantes foram para o inferno e o casal, para o céu... E começaram a rezar...

No dia seguinte, um sábado, em frente ao estacionamento, o Goela olhava, insistentemente à, procura de Bidinho. Ouvira falar na sua proximidade com a cantoria e pensava em convidá-lo para um teste com a banda do Clube da Bossa Nova.

Infelizmente, não conseguia visualizá-lo. Nem naquele sábado e nem nos outros que se sucederam... Bidinho fora cantar noutra freguesia...

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Sabor Brasileiro - Célia Rabelo

https://www.youtube.com/watch?v=nzReVJTCEn8

Querém-Quém-Quém - Carlos Bivar

https://www.youtube.com/watch?v=1MGWaPxr90o

Com Você -Sandra Duailibe

https://youtu.be/nIkK3b3Tyac

Amelius
Enviado por Amelius em 12/07/2015
Reeditado em 29/01/2024
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