Memórias de Maria Teresa - Um Colega

Enganava-me ou seria Antonio, aquele rapaz no fundo do ônibus? Aproximei-me para verificar. Se fosse, reconhecer-me-ia. Na escola primária, era o xodó das meninas. Começara desenhando bonecas e ao final do quarto ano, já desenhava modelos lindíssimos por encomenda das colegas. Até mesmo a professora, certa vez, chegou a pedir-lhe um vestido. Era visível o talento daquele rapazinho moreno, miúdo e de feições andróginas, para a moda. Combinava cores perfeitamente, criava estampas e modelos a partir de amostras de tecidos, e desenhava tudo como em transe, em menos de 15 minutos. Incrível! De vez em quando os meninos até chacoteavam de suas bonecas, mas nada que lhe pudesse ferir a alma - naquele tempo ainda não era comum a crueldade infanto-juvenil que hoje se vê nas escolas.

Sua atenção era muito disputada entre as meninas da classe. Até mesmo eu cheguei a brigar com uma coleginha por sua causa. Além de talentoso, Antonio era também bom aluno, muito educado e gentil, razões mais do que suficientes para “tolerar aquelas esquisitices” – como dizia seu pai -, mas não incentivá-las: “Desenhar bonecas lá era coisa de homem?!” Ao final da quarta série, separamo-nos e nunca mais o vira até aquele dia. Quando nossos olhos se encontraram, sorrimos ambos com alegria.

Antonio conservara as feições doces e continuava muito gentil. Exclamei:

- Nossa, quanto tempo!

- Pois é, menina, você não mudou nada! – replicou – O mesmo rostinho redondo.

Em poucos minutos, tratamos de colocar o papo em dia, e como não podia deixar de ser, acabei perguntando por seus modelos. Ao que ele, com uma sombra de tristeza no olhar, respondeu:

- Pois é, cidade pequena... acabei não conseguindo estudar o que realmente queria, pois aqui não tinha nada parecido com desenho de moda. Depois que papai morreu, há cinco anos, não quis deixar mamãe sozinha, e como meu irmão mais velho seguiu carreira militar, é casado e vive uma vida nômade... E você? – perguntou como que querendo desviar de si.

Tem gente que se alegra quando as coisas não vão bem para os outros. Eu não. Senti-me triste, também. Por isso peguei a deixa e mudei a direção da conversa um pouco para o meu lado. Contei-lhe que há muitos anos já não vivia naquela cidade, que estava lá agora só de visita.

- Casou, tem filhos? – quis saber.

- Sim, segui o conselho de minha mãe e casei-me com minha carreira, melhor marido que uma mulher pode ter, como ela costuma dizer – dei um sorriso maroto e completei – Ainda não perdi as esperanças de um dia encontrar minha metade vagando por aí. E você? – mordi o lábio, pois foi inevitável perguntar.

- Menina, eu... eu ainda estou esperando aquela pessoa especial... – Olhou para mim com o mesmo ar de cumplicidade com que nos olhávamos no quarto ano, quando os meninos faziam pouco de suas “bonecas”. Senti que, mais uma vez, seus olhos encontravam nos meus toda a compreensão do mundo, uma certeza de que nada mais precisava ser dito. Vi que meu ponto se aproximava e tratei de dar-lhe um cartão com dados para contato. Apertei o botão de próxima parada e antes de levantar e chegar rapidamente à porta, algo me cutucou e disse-lhe assim, de supetão, sem pensar:

- Antonio, sempre é tempo de se correr atrás de um sonho. O mundo é pequeno e a vida fugaz... Você tem muito talento. E sabe disso! Olhamo-nos fixamente. O ônibus havia parado e esperava por mim. Corri até a porta. Desci e virei a cabeça para trás. Antonio ainda me seguia com os olhos. Não nos vimos mais depois disto.

Outro dia, recebi um Email convidando para um evento desses do mundo da moda. Estranhei, por este mundo não fazer parte do meu. Ia jogar no spam, quando reparei no nome dos estilistas... Nesse momento, o sol sorriu no meu peito e um dia frio de inverno foi-se aquecendo, com um lindo céu azul deixando-se ver ao fundo.