SUICÍDIO & RELIGIÃO (ou religiosidade?)

1---Verão absoluto.  O carro me ultrapassou na estrada, algazarra de jovens, ainda me encantei com o vermelho brilhante, me espantei com um cartaz de letras enormes em toda a extensão do vidro traseiro - DEUS PREFERE OS ATEUS.  Motorista baixou o vidro, escutei gritar algo como:  “Nós (observem o plural) escolhemos o inferno!”  Não troquei o ‘vê’ pelo ‘efe’ - escutei isto mesmo.  Jogou o carro para o abismo (não medi a altura...) e houve uma explosão.  Pela tevê, cinco vítimas fatais -  idades, sexos, residências e locais de trabalho diferentes - por certo, familiares souberam de algum ‘passeio’ e informaram.  Todos formados em diferentes cursos superiores.  Amigos de onde?

2---Pensando bem, se todos acreditarem no Andar de Cima, seja Deus único ou deuses, a cada minuto a mesma pessoa atuará com mil rezas e pedidos, entupindo a caixa de entrada do “Computador Azul Claro” lá de cima...  Ao mesmo tempo em que parcialmente descreio, sem dogmas e nada peço, detesto incomodativa pregação e papeizinhos na minha correspondência ou porta de casa, seja qual for a fanática doutrinação ou crença...  Reencarnação me soa quase como piada, atuais afinidades muitas e poucas desafinidades com uma AMIGA que ficticiamente diz “ter sido” minha mulher e me pede em casamento... para a próxima reencarnação.  Dúvidas entre a Grécia Antiga (EU) e o Japão (ELA), daí as memórias de nossas vidas anteriores serem confusas...  EU guerreiro machão, ELA nada geisha submissa. 

3---Tenho particulares questionamentos entre o teísmo, o agnosticismo, o ateísmo...  Estou no labirinto (de Minos?).  Uma coisa é certa - toda crença no divino recusa a morte voluntária.  O ritualístico suicídio japonês não tem ligação com religião, porém a visão teórica de vida e morte era própria dos valores samurais budistas - matar-se para mostrar desdém pelas autoridades e pelo mundo. 

4---A morte é inevitável;  lembro de minha avó filósofa no ato de matar nossa galinha de estimação, totalmente cor de cenoura, dava uns gritinhos agudos, parecia cantar ópera, vizinha chamava /erroneamente, descobri anos depois/ de “Maria Escala” - “Ora, crianças (éramos quatro), ninguém fica para semente...”  Minha irmã caçula, esperança na ressurreição,  plantou o bico da galinha num vaso de violetas roxinhas, flores tímidas como elazinha.  /Esta cena foi retratada numa novela:  pai, entre desesperado e esperançoso, plantando medalha de filho-herói que morrera na guerra./

5---De um ex-samurai que se tornou monge em 1716:  “Todas as manhãs, pense em ser dilacerado por flechas, balas, lanças e espadas;  em ser arrastado por ondas que crescem ou arremessado na fúria das chamas;  em ser atingido por um raio, feito em pedaços por um terremoto ou jogado de penhascos;  em morrer de doenças horríveis ou se matar após a morte de seu senhor.  Considere-se morto, todos os dias de sua vida.”  Ah, no período medieval, suicídio era ritualesco e questão de honra para um samurai fracassado, fosse qual fosse a missão - nunca se render.

6---“Parece existir no Japão uma dança ritual que mistura morte e beleza” - palavras do escritor-colunista LUIZ PAULO HORTA.  Privilégio de uma elite, jamais uma humilhação:  relação entre beleza e morte, o ideal estético que pautava o código dos samurais.  No teatro KABUKI, arte popularíssima, muitos exemplos de seppuku, incluindo pactos amorosos entre casais. E ao final da II GM, os kamikazes (tradução “vento divino”), reverenciados heróis nacionais,  eram guerreiros suicidas que pilotavam aviões com explosivos para atacarem navios norte-americanos no Pacífico  - prazer de atacar, talvez gritar o nome do Imperador e morrer... Em maioria, o desperdício de jovens universitários, “filhinhos de papai”, na inveja explícita dos sargentos........ - mescla de fanatismo e morte como honra, gloriosamente.  Logo após a rendição do país, em 1945, o ministro da agricultura se matou, imitado por dezenas de oficiais de alta patente - na atualidade, alguns poucos comprovados corruptos acusados de favorecimento ilícito.........  Haja espada para tanta gente!

7---O seppuku (chamado hara-kiri no Ocidente) não é lenda medieval, posição de CIO-CIO SAN e de YUKIO MISHIMA (escritor japonês ultranacionalista, 1970), ele em detalhado ritual um protesto contra o esquecimento de velhos valores nacionais que não renasceram...  Passos programados sem falhas:  local, roupa e higiene (banho, cabelos presos, bochechas rosadas /cor das cerejeiras até na hora da morte!/, tamanho do punhal e da espada para a decapitação...  Tradição antiquíssima e sem tabu - é honra e sacrifício:  escolha coexistente entre os vários tipos do corte do estômago + o kaishaku, execução final - preparo espiritual e  técnico de outra pessoa para arrancar a cabeça sem gerar banho de sangue.  Suicídio, como prática socialmente aceita, a principal causa de morte entre jovens de 20 a 30 anos (ou qualquer idade), cerca de 35 mil pessoas ao ano.  Falta de emprego, crises econômicas, problemas de saúde, amor/desamor - forma de escapar de desprestígio por fracasso e salvar a família de vergonha ou privações financeiras.  Xintoísmo e budismo isentos desse tabu religioso - o suicídio. 

8---Meses após o “desastre” na estrada, foi achada no local, dentro de um saco plástico protetor, uma chave de cofre de banco e, neste, cinco folhas em branco, nenhum texto esclarecedor, apenas as assinaturas, papel por papel, num branco vazio.  Branco é a cor-símbolo da paz... que devem ter finalmente encontrado. Onde?

LEIAM meus trabalhos “Gulodice de Pedro Nava - I e II” e “Mistério no suicídio”.

NOTA DO AUTOR:

“Madame Buterfly”, ópera de GIACOMO PUCCINI, 1904)  -  um oficial da Marinha americana “casa-se” com a protagonista japonesinha a quem abandona grávida;  retorna três anos depois, casado com uma americana, simplesmente para buscar o filho.  Em desespero, a apaixonada agora se dá conta de abandono, e se mata aos pés dele (no Brasil, cena seria MACHADIANA ou RODRIGUIANA!), filho mestiço brincando com a bandeira do novo país, do outro lado do mundo.

F  I  M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 22/10/2017
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